- Toda Arte Contemporânea é pagã;
respondeu-me um filósofo, surpreendido com a pergunta. Afinal, há muito que as vinculações
religiosas não são mais uma necessidade para a arte. Resposta que não me surpreendeu,
num primeiro instante, pois a palavra “pagão” passou a assemelhar-se à palavra“ateu”,
ganhando o significado daquele que “não é cristão” ou que não recebeu o baptismo.
Assim a palavra tem sido compreendida no mundo judaico cristão, mas se
retrocedermos um pouco e atentarmos para a etimologia, veremos que paganus significa “do campo” ou ainda
“morador do campo”. E também tem o significado extra de "civil", ou
seja, pessoa que não mantém relações com o militarismo, o que nos faz lembrar
da natural postura anárquica do pagão (no sentido político que é dado à palavra
“anarquia”, é claro).
Obviamente usamos o sentido
original da palavra "pagão", deixando de lado o seu significado
corrompido. Acrescentando-lhe ainda outros significados, já que uma postura
pagã frente à vida tem-se vindo a enraizar na sociedade actual, não se restringindo
mais nem à etimologia original, acima
referida, invadindo o campo das realizações e reflexões humanas em diversas
áreas de actuação. Deixando-se de lado a apropriação da palavra “paganismo”
feita pela Igreja, descortina-se um imenso leque de possibilidades. No entanto,
a excessiva proficuidade do termo é também um factor que levanta dificuldades,
porque, afinal, o que seria Arte Pagã Contemporânea? Um olhar pagão sobre o
mundo? Caracterizar-se-ia pela escolha dos suportes? Pelo que é representado?
Um determinado estilo? Uma arte engajada? Uma arte interdisciplinar? Definir-se-ia
pela decifração de um determinado Imaginário?
Cumpre primeiro procurar definir
o que é paganismo na contemporaneidade e observar como a Arte vai se
apropriando disso.
Se a alma pagã é a mesma através
dos tempos, a sua materialização se insere em outra leitura do mundo; estamos
no século XXI. O pagão é um panteísta - os deuses são a natureza do mundo - e,
antes de tudo, um animista - as coisas naturais são todas animadas, tem vida. O
pensamento pagão é mágico, por excelência. Os deuses pulsam em nós e ao nosso
redor. O prazer é lícito, a fruição necessária. O poder do pagão é o exercício
pleno da sua vontade. Comprometido com a Natureza, assim como preserva a sua
vida, encara o mundo como uma grande rede que a tudo permeia e no qual as suas acções
fazem toda a diferença.
A Arte Pagã Contemporânea absorve
as tecnologias, os avanços e aprecia a evolução dos tempos. Mas guarda a
essência pagã, que existe há milénios. Para ser mais exacto, a alma pagã, o
paganismo como filosofia de vida, é Extemporâneo, assim como a Natureza é atemporal,
perene em sua magnitude, embora em constante mutação - a única coisa que não
muda é a mudança, é bom lembrar. O Paganismo escapa às particularidades do
mundo presente exactamente porque não se localiza em lugar algum do tempo; o
que a alma pagã tem de mais peculiar, é que pertence a todos os tempos. A
palavra "Contemporâneo" neste contexto apenas indica o uso de
materiais dos tempos actuais, assim como antes foram usados os materiais do
passado: o mármore das esculturas gregas e os pigmentos da pintura rupestre.
Podemos pensar no que nos diz o
filósofo Schweppenhäuser, ao se reportar ao distanciamento humano em relação à
Natureza:
“O distanciamento da natureza
através da moderna racionalidade é o meio de sua dominação, que, entretanto,
não produz liberdade, mas sim o retorno violento da natureza esquecida,
reprimida. Assim, a dominação da natureza torna-se irmã gémea da sua
decadência”.
Absorvemos a tecnologia porque
não encaramos a racionalidade como algo separado do corpo, contrariando o ponto
de partida dualista do filósofo. E porque os instrumentos são prolongamentos
dos nossos gestos. O difícil é a justa medida, saber temperar as necessidades
da Terra com a sede pelo domínio tecnológico que, não raro, ultrapassa as
fronteiras do permissível. Dominando a Terra e o Corpo, considerados
aprisionamentos do Homem, a Alma e o Espírito se soltariam, para cumprir a sua
verdadeira Missão: a de uma racionalidade canhestra, ou de uma religiosidade
tapada. Este é o império das Religiões, dos inúmeros re-ligares que observamos em ação e dos excessos cometidos em nome
da Ciência. O retorno da Natureza esquecida, vilipendiada, é sempre violento,
principalmente no âmago, no inconsciente do ser humano. Dominar a natureza é
causar o seu estrago e nesse sentido, apesar do didactismo de uma separação
entre a realidade e a natureza, é impossível não concordar com Schweppenhäuser.
É uma das funções críticas da
Arte reflectir sobre essa questão. Eduard Kac, por exemplo, ao trabalhar com a
Arte Bio telemática e a Arte Transgénica, questiona a apropriação do uso da
genética em Arte e levanta questões de cunho ético e social que dizem respeito
à apropriação excessiva da Natureza pela tecnologia.
O Paganismo Contemporâneo busca
repensar o que ainda se costuma ver como dicotomia: corpo e espírito estão
juntos e não separados. Ainda dentro de uma lógica e filosofia marxista, cantou
a bola o visionário Oswald de Andrade : a vida primitiva integrada na
civilização, criando a sua síntese. A vida primitiva de que fala Oswald é, a
meu ver, a alma secular pagã.
Existe uma correlação, uma cooperação entre o homem e
máquina, que pode ser traduzido em gesto, em Linguagem, em Arte. Então, temos
incluídas no paganismo contemporâneo também as propostas de uma arte da
cibercultura, uma percepção física de um modelo teórico e a compreensão formal
das sensações físicas.
Os deuses não negam a máquina, os avanços, as possibilidades
inúmeras da criação humana. Não é mais possível ressentir-se com o que está
feito, somos agentes do mundo presente e nos cabe a tarefa de preservar a Terra
com inteligência, respeitando e fluindo nos seus ritmos diversos. E procurando
coibir abusos contra a Natureza, que também é a nossa Natureza Humana. E a
melhor crítica sempre foi, através de todos os tempos, a Arte.
O Paganismo Contemporâneo nesse sentido faz uso do que é
essencialmente anárquico, no melhor sentido do termo: auto gestão e
responsabilidade.
Procurando responder às questões levantadas no início deste
artigo, podemos dizer que se incluem no Paganismo Contemporâneo a EcoArt, a
LandArt, a pintura matérica. O uso de materiais naturais, recicláveis e
reciclados; nas Artes Plásticas, a paisagem como suporte para intervenções. Na
música, os ritmos tribais, a boa World Music, as temáticas autócnes, as danças
sagradas, os mantras pessoais. Na literatura, a poesia de fôlego, intensa,
muitas vezes desencanada, de sentido libertário - mas concebida com rigor - e
identificada com as aspirações do seu tempo. A Arte Pagã Contemporânea se
associa aos mitos e ritos e está imbuída de Magia, a sua Mãe, a temática primordial.
Seria então toda Arte Contemporânea, pagã?
Talvez seja muito cedo para definir, muito cedo para
vislumbrar ou tentar cercear o que seja uma expressão que encerra três palavras
tão abrangentes e complexas.