Ao longo de quase toda a sua vida, Fernando Pessoa foi um homem atormentado
pelo problema do sentido do ser humano, da vida e do universo.
Ó sistema mentido do universo
Estrelas-nada, sois irreais
Oh com que ódio carnal e estonteante
Meu ser desterrado vos odeia.
Curiosamente, essa atracção pelo mistério do ser nunca foi resolvida
através da fé católica em que foi criado.
Enquanto jovem, Pessoa reservava já uma parte importante dos seus rancores
profundos às religiões. Por volta de 1908, o seu pouco conhecido heterónimo
Charles Robert Annon anota em inglês esse seu ódio:
Em nome da VERDADE, da CIÊNCIA e da FILOSOFIA
(…) passo sentença de excomunhão sobre todos os padres e todos os secretários
de todas as religiões do mundo.
Mago Aleister Crowley |
Entretanto, vai estudando filosofia, essencialmente de maneira
autodidáctica. Tem uma curta experiência no âmbito do espiritismo e passa à
teosofia. Mais tarde, nos anos 30, e por influência do seu encontro com o
mirabolante mago irlandês Aleister Crowley, há-de virar-se decididamente para o
ocultismo.
Nunca voltará ao seio do cristianismo oficial. Chegando mesmo a
hostilizá-lo. Alberto Caeiro insulta a Igreja Católica no poema VIII do célebre
Guardador de Rebanhos. Este, Reis e António Mora tornar-se-ão os arautos da
reconstrução do paganismo. Campos dará uma dimensão mecânica e urbana ao
divino. Fernando Pessoa (ele mesmo) permanecerá sempre fiel a essa enorme
inimizade face aos cristianismos oficiais. Mantendo-se coerente, nem mesmo
perante a beatice do salazarismo transigiu.
Creio na existência de mundos
superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em existências de diversos
graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que
presumivelmente criou este mundo. (…) Não creio na comunicação directa com
Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, podemos ir comunicando com
seres cada vez mais altos.
Esse Deus parece ser concebido à maneira maçónica de «Grande Arquitecto do
Universo» e a via para ele nunca está terminada. Aliás, era este o significado
essencial da obra inacabada O Caminho da
Serpente e a dimensão simbólica desse animal era precisamente a deslocação
perpétua da verdade absoluta.
(…) não pertenço a Ordem Iniciática
nenhuma.
O poeta considerava haver três vias para o Absoluto: (…) o caminho mágico (incluindo práticas como
as do espiritismo (…)), caminho esse extremamente perigoso, em todos os
sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e
lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito
de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a
prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm.
O caminho da Serpente está fora das ordens e das iniciações, está, até, fora das leis (rectilíneas) dos mundos e de Deus. O carácter maldito, o aspecto repugnante, da Cobra, traz marcado a sua Oposição ao Universo — profundo e obscuro Mistério Magno. Ela é o Espírito que Nega, mas nega mais, e mais profundamente, do que em geral se entende ou se pode entender. Nega o bem no seu baixo nível, em que é só Serpente e tenta Eva; nega a verdade no seu segundo nível, em que é (…) nega o bem e o mal no seu terceiro nível, em que é Satã; nega a verdade e o erro no seu quarto nível, em que é Lúcifer; (ou Vénus); nega-se a si mesma e a tudo no seu quinto nível, e fuga, em que é SS, a Revelação Suprema. (…) e a si mesma se tenta e se mata.
Todos os caminhos no mundo e na lei são rectilíneos; o caminho da Serpente é a evasão dos caminhos, porque é, substancial e potencialmente, a Evasão Abstracta, o reconhecimento da verdade essencial, que pode exprimir-se, poeticamente, na frase de que Deus é o cadáver de si mesmo; a descoberta do Triângulo Místico em que os três vértices são o mesmo ponto, o segredo da Trindade e do Deus Vivo, que, em certo modo, é o Homem Morto em e através de Deus Morto.
Fonte: Grandes protagonistas da história de Portugal –
Fernando Pessoa – Planeta de Agostini
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