Arentio e Arentia
Não são dos deuses ibéricos mais conhecidos e não seriam sequer dos mais populares na antiguidade, pelo menos a julgar pelo número de altares e a dimensão da área onde Arentio e Arentia parecem ter sido adorados. A isto junta-se a incógnita sobre as suas esferas de influência ou aquilo que as pessoas esperavam deles. Há pistas e, com base nelas, teorias, mas sem grandes certezas. E há inclusive a possibilidade de estarmos perante um par divino semelhante a vários outros da Europa ocidental.
1. Informação
Ao todo, conhecem-se nove altares dedicados a Arentio e/ou Arentia, todos provenientes da Beira Interior e da Estremadura espanhola: as duas divindades surgem como um par em duas peças provenientes de Coria, em Espanha, e outras duas achadas em território português, uma na zona de Ferro e outra em Ninho do Açor, no distrito de Castelo Branco. Há ainda dois altares apenas a Arentio, em Idanha-a-Nova, um terceiro vindo de Moraleja, na região de Cáceres, e ainda um dedicado só a Arentia encontrado no concelho do Sabugal (Olivares Pedreño 2002: 188). A estes junta-se outro descoberto mais recentemente em Cilleros, também na região de Cáceres, dedicado ao par divino com o epíteto Tedaicis, o que levanta a possibilidade de um décimo altar um pouco mais a sul, em Villamiel, infelizmente hoje desaparecido, mas cuja inscrição faria referência a um deus Tetaeco (Olivares Pedreño e Ramajo Correa, 2013). A julgar pelos dados arqueológicos, Arentio e Arentia seriam assim divindades lusitanas cujo culto se estendia até à zona de fronteira com os vetões.
Ao todo, conhecem-se nove altares dedicados a Arentio e/ou Arentia, todos provenientes da Beira Interior e da Estremadura espanhola: as duas divindades surgem como um par em duas peças provenientes de Coria, em Espanha, e outras duas achadas em território português, uma na zona de Ferro e outra em Ninho do Açor, no distrito de Castelo Branco. Há ainda dois altares apenas a Arentio, em Idanha-a-Nova, um terceiro vindo de Moraleja, na região de Cáceres, e ainda um dedicado só a Arentia encontrado no concelho do Sabugal (Olivares Pedreño 2002: 188). A estes junta-se outro descoberto mais recentemente em Cilleros, também na região de Cáceres, dedicado ao par divino com o epíteto Tedaicis, o que levanta a possibilidade de um décimo altar um pouco mais a sul, em Villamiel, infelizmente hoje desaparecido, mas cuja inscrição faria referência a um deus Tetaeco (Olivares Pedreño e Ramajo Correa, 2013). A julgar pelos dados arqueológicos, Arentio e Arentia seriam assim divindades lusitanas cujo culto se estendia até à zona de fronteira com os vetões.
Quanto a outros epítetos atribuídos a estes deuses, Amrunaeco surge nos altares de Coria e Ocelaeca/o no de Ferro, enquanto Tanginiciaeco e talvez Cronisensi são atribuídos a Arentio em duas das peças encontradas em Portugal. Já Arentia é chamada de Equotullaicensi na ara do Sabugal. E é esta a informação essencial que se tem sobre estes deuses. Não se conhece qualquer elemento iconográfico, descrição ou sequer alusão ao seu culto, muito menos um mito que elucide as suas esferas de influência. As únicas vias de estudo são por isso a etimologia dos teónimos e epítetos e ainda uma análise comparativa, quer com o contexto ibérico, quer com a realidade conhecida do resto da Europa ocidental.
2. Interpretações
Começando pela origem e significado dos nomes das duas divindades, as hipóteses formuladas têm sido várias e não existe consenso académico sobre o assunto. Leite de Vasconcelos sugeriu de início uma raiz latina em arens ou “árido”, mas acaba por recusá-la argumentando, por um lado, com o carácter celta da terminação -entius e, por outro, com a aparente origem nativa de alguns dos dedicantes (1905: 322). O que, já agora, exclui igualmente a hipótese de uma relação com “ara” ou “altar” que por vezes ainda se lê pela internet. Já Blanca Prósper sugeriu tratar-se de um hidrónimo com raiz no indo-europeu para “pôr-se em movimento, correr” (2002: 99) e que seria partilhada pelo epíteto Arantoniceo, atribuído ao deus Araco num altar descoberto na zona de Cascais (Encarnação e Guerra 2010: 103). Blázquez, por seu turno, propôs uma origem num topónimo (Olivares Pedreño 2002: 187.2).
Começando pela origem e significado dos nomes das duas divindades, as hipóteses formuladas têm sido várias e não existe consenso académico sobre o assunto. Leite de Vasconcelos sugeriu de início uma raiz latina em arens ou “árido”, mas acaba por recusá-la argumentando, por um lado, com o carácter celta da terminação -entius e, por outro, com a aparente origem nativa de alguns dos dedicantes (1905: 322). O que, já agora, exclui igualmente a hipótese de uma relação com “ara” ou “altar” que por vezes ainda se lê pela internet. Já Blanca Prósper sugeriu tratar-se de um hidrónimo com raiz no indo-europeu para “pôr-se em movimento, correr” (2002: 99) e que seria partilhada pelo epíteto Arantoniceo, atribuído ao deus Araco num altar descoberto na zona de Cascais (Encarnação e Guerra 2010: 103). Blázquez, por seu turno, propôs uma origem num topónimo (Olivares Pedreño 2002: 187.2).
Tal como na etimologia, também a natureza de Arentio e Arentia tem sido objecto de diferentes teorias. A juntar à já referida sugestão de Prósper, que faz deles divindades aquáticas, Jorge de Alarcão propôs uma função guerreira, afirmando que Arentio seria o Ares ibérico de que fala Estrabão, tendo como único argumento a semelhança parcial entre os nomes das duas divindades, com Arentia a poder ser assim identificada com a deusa Vitória (Alarcão 2001: 304). Posteriormente, Alarcão retomaria a sua tese, mas com contornos diferentes, aceitando a etimologia proposta por Prósper, mas vendo nela uma alusão às tácticas de guerrilha dos lusitanos, as quais naturalmente requerem rapidez e movimento (2009: 103). Mais curiosa ainda é a ideia de José da Encarnação, que defende que Arentio e Arentia são na realidade uma única divindade que tanto pode assumir o género masculino como o feminino dependendo da “ideologia” ou da “percepção do momento” (2002: 521). O mesmo autor propôs ainda uma função tutelar, com base, por um lado, na reduzida abrangência geográfica do culto e, por outro, na interpretação territorial dos epítetos (Olivares Pedreño 2002: 187.2).
A leitura dos títulos atribuídos a Arentio e Arentia como sendo de natureza étnica ou tópica não está desprovida de sentido e tem sido sugerida por diversos estudiosos, embora nem todos retirem daí as mesmas conclusões que José d’Encarnação. Por exemplo, Marques Leitão relaciona o epíteto Ocelaeca/o, que consta da ara descoberta em Ferro, no concelho da Covilhã, com a povoação de Ocealum, que é mencionada em fontes clássicas (2015: 113). Para Amrunaecus já se sugeriu uma possível ligação com um grupo tribal denominado ambrones (Blázquez Martínez 2006: 230), enquanto Tanginiciaeco, de Idanha-a-Nova, poderá referir-se a uma unidade “etno-familiar” (Blázquez Martínez 2010: 516), até porque o antropónimo Tangini está documentado na região (Marques Leitão 2015: 113, n. 67). E de referir ainda o epíteto de Arentia no altar descoberto no Sabugal, Equotullaicensi, com o sufixo -ensi a poder indicar uma origem territorial, raciocínio que não será estranho aos portugueses, dado que ainda hoje usamos uma forma dessa terminação. Pensemos em portuense, bracarense, madeirense, etc. No entanto, o mesmo epíteto também pode sugerir uma ligação a cavalos, com base no elemento equo- (Blázquez Martínez 2006: 211).
Por fim, há o modelo interpretativo de Olivares Pedreño, que toma as inscrições votivas da região no seu conjunto, em vez de apenas as de Arentio e Arentia, e tenta reconstruir um panteão regional com base, por um lado, num exercício comparativo e, por outro, no pressuposto de que divindades supra-locais com a mesma função não seriam adoradas na mesma zona por constituir uma sobreposição desnecessária de papéis. O que é uma assunção razoável, ainda que não seja infalível, dado que se tem apenas um conhecimento muito fragmentado da vida religiosa do território a que hoje correspondem a Beira Interior e a região de Cacéres. E para mais, não é inteiramente seguro que Bandua equivalesse a Marte, pelo menos não em todas as situações. Mas dito isto, o modelo de Pedreño tem o mérito de olhar para a imagem de conjunto, recorrendo inclusive a exemplos de além-Pirenéus, tentando reconstruir um sistema do qual os diferentes deuses fariam parte em vez de se olhar para cada um deles com uma espécie de ilha sem qualquer relação com outras divindades.
Assim, assumindo que Bandua cumpria a função de defensor da comunidade, o que podia fazer dele um equivalente de Marte, enquanto Reve era o deus celestial passível de ser assimilado a Júpiter, sobram as grandes esferas de influência do submundo, saúde e prosperidade. Para tentar preencher essa lacuna, Pedreño recorre a uma análise comparativa com o resto da Europa ocidental romana, a qual permite-lhe concluir que, de entre os pares divinos a que se prestava culto além-Pirenéus, o elemento masculino era frequentemente assimilado a Apolo, seguido de Mercúrio e por fim Marte. Ora, assumindo a existência de padrões comuns no universo celta ou celtizado da Europa ocidental no que a conceitos religiosos diz respeito, Olivares Pedreño coloca a hipótese de, na faixa ocidental da península Ibérica, o par divino mais conhecido – Arentio e Arentia – cumprir uma função semelhante à maioria dos outros extra-hispânicos e poder, por isso, ter alguma equivalência a Apolo e Mercúrio (Olivares Pedreño 2002: 187-193). É apenas e só uma hipótese, ainda que baseada em dados concretos, mas tem o mérito de olhar para o conjunto das práticas religiosas e fornecer um modelo interpretativo sistemático.
3. Hipótese de trabalho
O que fazer com toda esta informação? Pode-se começar por rejeitar a teoria de José d’Encarnação de que Arentia e Arentia são na realidade a mesma entidade. A tese parece ser baseada numa ideia expressa pelo mesmo autor noutro artigo, de que “os deuses não têm sexo” (2008: 358), o que talvez deva alguma coisa a pré-concepções que seriam estranhas à generalidade do mundo antigo, já que a prática comum era a de atribuir géneros às divindades. A arte religiosa e a literatura têm uma abundância tal de exemplos que chega a ser ridículo negá-lo. E a expressão latina sive deus, sive dea – se deus ou deusa – era empregue por uma questão de cautela quando o destinatário era uma divindade nova ou desconhecida, não se assumindo por isso se era masculina ou feminina, e não radica numa crença hipotética na ausência de género.
O que fazer com toda esta informação? Pode-se começar por rejeitar a teoria de José d’Encarnação de que Arentia e Arentia são na realidade a mesma entidade. A tese parece ser baseada numa ideia expressa pelo mesmo autor noutro artigo, de que “os deuses não têm sexo” (2008: 358), o que talvez deva alguma coisa a pré-concepções que seriam estranhas à generalidade do mundo antigo, já que a prática comum era a de atribuir géneros às divindades. A arte religiosa e a literatura têm uma abundância tal de exemplos que chega a ser ridículo negá-lo. E a expressão latina sive deus, sive dea – se deus ou deusa – era empregue por uma questão de cautela quando o destinatário era uma divindade nova ou desconhecida, não se assumindo por isso se era masculina ou feminina, e não radica numa crença hipotética na ausência de género.
Também não se entende como é que epítetos étnicos ou territoriais provam, por si só, que Arentio e Arentia tinham uma natureza tutelar geograficamente restrita. O simples facto de serem conhecidos diferentes títulos e de os altares provirem de pontos distintos é suficiente para pôr em causa a ideia de que estamos perante deuses locais. Aliás, não deixa de ser irónico que se coloque essa possibilidade para Arentio e Arentia, que terão sido adorados em mais do que um sítio, e para Endovélico, cujo culto ter-se-á resumido à zona do Alandroal, fala-se no maior ou mais importante dos deuses lusitanos. E se dúvidas há quanto à não-relação directa entre epítetos e natureza local, é verificar, por exemplo, os títulos que eram atribuídos a Zeus na Grécia antiga: Parnêthios (do monte Parnes), Larisaios (de Larissa), Nemeios (de Nemeia), Dôdônaios (de Dodona), etc. E não me parece que se defenda que ele era um deus local ligado a um território, comunidade ou família em específico. Há, isso sim, um elo com diferentes contextos por via de epítetos correspondentes, mas sem que isso signifique que a divindade estaria necessariamente limitada ao papel por eles expresso.
Se isto permite pôr de parte certas teorias sugeridas por alguns estudiosos e determinar, assim, o que é que Arentius e Arentia não eram, continua-se sem certezas quanto ao que eles eram e, desse modo, qual o papel que podem ter no presente. E à falta de dados concretos que permitam uma resposta sólida, é a lei da probabilidade que oferece maior segurança. O que neste caso traduz-se pela tese de Olivares Pedreño, baseada na comparação com os pares divinos extra-hispânicos e a predominância de Apolo e Mercúrio entre eles, levando-me por isso a optar pela hipótese de que é essa a esfera de influência de Arentio e Arentia: saúde e prosperidade, protectores na esfera privada e pública. Como Bormo e Bormana, Grannus e Sirona, Mercúrio e Rosmerta. E repare-se que mesmo quando o elemento masculino era identificado com Marte, há casos em que a sua função era menos bélica e mais salutar ou próspera. É disso exemplo Marte Smertrius e a deusa Ancamna, mas também Marte Visucius e Visucia, sendo que neste caso também há notícia de um Mercúrio Visucius (Adkins 2000: 145 e 241). Isto não invalida a etimologia proposta por Prósper, dado que há uma ligação comum entre água e saúde, a qual pode facilmente estender-se ao bem-estar de um modo mais geral.
4. Ideias para um culto moderno
Feita a opção, os contornos de um culto moderno derivam naturalmente dela. Pode-se escolher o primeiro dia de Agosto para data festiva de Arentio e Arentia, usando-se como referência o Mercúrio celta que é Lugh, ou pode-se escolher o início de Setembro dada a origem do nome do mês no número sete e a ligação deste com Apolo. O mesmo motivo oferece Julho como possibilidade adicional e ainda Janeiro, por ser o início do ano e desse modo uma altura apropriada para desejar ou pedir sucesso e saúde.
Feita a opção, os contornos de um culto moderno derivam naturalmente dela. Pode-se escolher o primeiro dia de Agosto para data festiva de Arentio e Arentia, usando-se como referência o Mercúrio celta que é Lugh, ou pode-se escolher o início de Setembro dada a origem do nome do mês no número sete e a ligação deste com Apolo. O mesmo motivo oferece Julho como possibilidade adicional e ainda Janeiro, por ser o início do ano e desse modo uma altura apropriada para desejar ou pedir sucesso e saúde.
Quanto a símbolos, uma fonte rodeada de moedas, duas cornucópias ou um cesto de fruta no meio de duas cascatas são algumas das hipóteses. Para animais, a opção natural são as aves aquáticas, por serem simultaneamente rápidas e estarem ligadas à água. O pato, o mergulhão ou o guarda-rios são exemplos óbvios, este último em especial dado que é ao mesmo tempo veloz e um símbolo de paz e prosperidade, embora os primeiros sejam mais facilmente avistados aos pares, o que não deixa de ser relevante para o caso de Arentia e Arentio. A lontra é outra possibilidade e talvez ainda o coelho ou a lebre, que mesmo não estando associados à água não deixam de ser um símbolo de rapidez e agilidade, fertilidade e boa sorte. E depois o comportamento sazonal do ou dos animais escolhidos pode acrescentar novos critérios à escolha de uma ou mais datas festivas.
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