A arca pessoana continua a surpreender. Entre versos e fragmentos, os especialistas têm encontrado uma míriade de escritos que revelam um poeta atento à sua época. Muito desses textos eram projecto de livros e de artigos que, no entanto, ficaram por publicar.
O volume "Fernando Pessoa: O Guardador de Papéis" organizado por Jerónimo Pizarro e editado pela Texto Editora, nas livrarias a 24 de Junho, revela algumas dessas facetas desconhecidas, reunindo as intervenções do colóquio homónimo organizado pela Casa Fernando Pessoa. Entre as mais surpreendentes está a posição do poeta em relação às aparições de Fátima. O historiador José Barreto recolheu vários textos, alguns deles inéditos, como este que aqui antecipamos, pensado para o Diário de Lisboa. É um olhar irónico sobre uma realidade que já na altura arrastava multidões e, nas palavras de Fernando Pessoa, vários negócios.
Fátima é o nome de uma taberna de Lisboa onde às vezes... eu bebia aguardente. Um momento... Não é nada disso... fui levado pela emoção mais que pelo pensamento, e é com o pensamento que desejo escrever. Fátima é o nome de um lugar da província, não sei onde ao certo, perto de um outro lugar do qual tenho a mesma ignorância geográfica mas que se chama Cova de qualquer santa. Nesse lugar -- em um ou no outro-- ou perto de qualquer deles, ou de ambos, viram um dia umas crianças aparecer Nossa Senhora, o que é, como toda a gente sabe, um dos privilégios infinitos a que se não parte a corda.
(...) e assim como passou a haver "liberdades" em vez de "liberdade", assim também passou a haver crenças em vez de crença, fés em vez de fé, e vários outros plurais ainda mais singulares.
(...) Seja como for, o facto é que há em Portugal um lugar que pode concorrer e vantajosamente com Lourdes. Há curas maravilhosas, a preços muito em conta; há peregrinações que dispensam o combóio (criação do estúpido etc!).
(...) O negócio da religião a retalho, no que diz respeito à Loja de Fátima, tem tomado grande incremento, com manifesto extase místico da parte dos hoteis, estalagens e outro comércio desses jeitos--o que, aliás,está plenamente de acordo com o Evangelho, cuidando-se de bens materiais,"Buscai-vos o Reino de Deus e todas essas coisas vos serão acrescentadas".
Fernando Pessoa Jornal de Letras nº 1010 de 17-30 de Junho de 2009
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