Em plena crise, o pensamento inquieta-se e interroga-se; ele pesquisa as causas mais profundas do mal que atinge a nossa vida social, politica, económica e moral.
As correntes de ideias, de sentimentos e interesses chocam brutalmente, e deste choque resulta um estado de perturbação, de confusão e de desordem que paralisa toda a iniciativa e se traduz na incapacidade de encontrarmos soluções para os nossos males.
Portugal perdeu a consciência de si mesmo, da sua origem, do seu génio e do seu papel, de herói intrépido, no mundo. Chegou a hora do despertar, do renascimento, de eliminar a triste herança que os povos do velho mundo nos deixaram, as bafientas formas de opressão monárquicas e teocráticas, a centralização burocrática e administrativa latina, com as habilidades, os subterfúgios da sua politica e dos seus vícios, toda esta corrupção que nos tolda a alma e a mente.
Para reencontrar a unidade moral, a nossa própria consciência, o sentido profundo do nosso papel e do nosso destino, isto é, tudo o que torna uma nação forte, bastaria a nós portugueses eliminar as falsas teorias e os sofismas que nos obscurecem o caminho de ascensão à luz, voltando à nossa própria natureza. Às nossas origens étnicas, ao nosso génio primitivo, numa palavra, à rica e ancestral tradição lusitana e/ou celtibera, agora enriquecida pelo trabalho e o progresso dos séculos.
Um país, uma nação, um povo sem conhecimento, saliência do seu passado histórico, origem e cultura, é como uma árvore sem raízes. Estéril e incapaz de dar frutos.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Os lusitanos e a religião

Muitas festividades cristãs são, normalmente, sobrevivências de celebrações pagãs. As festas mais importantes do ano ligam-se ao calendário indo-europeu, com semelhanças evidentes com o calendário céltico. O culto céltico dos mortos pode-se identificar com o das alminhas, ou com a prática da encomendação das almas, naturalmente cristianizadas.


Para os lusitanos a fundição dos metais, particularmente a dos minérios de ferro, era um acto sagrado e os ferreiros, tal como entre os celtas, considerados como mágicos. Moncorvo, situado nas faldas da Serra de Reboredo, rica em ferro, parece ter herdado o seu nome de um culto ao corvo, representado por um amuleto com a forma de um corvo de ferro. Segundo Estrabão essa prática era comum ao norte da Hispânia (Geografia, Liv. III). Jean des Vries na obra citada (página 175) e Grenier (Gaulois, página 341) referem-se ao corvo como ave orácula dos ferreiros.


O culto ao porco aparece sobre a evocação de Santo André Avelino, protector cristão dos porcos. Encontrei esculturas zoomórficas dedicados ao porco e ao touro, junto de uma capela sob evocação deste santo, em Almofala, Figueira de Castelo Rodrigo. Também em Castelo Mendo (Almeida), localizei dois verrascos de pedra, a uma das entradas da cerca medieval, certamente no mesmo sítio por onde, na época castreja, se entrava na povoação e se saía para a necrópole. Isto é o que nos sugere o Calvário que fica no caminho destas esculturas. Este Calvário situa-se, ao que nos informaram, num local que outrora foi mortório (cemitério).


O Zéfiro, deus do vento, tinha um santuário na Serra de Monsanto (monte Santo), perto de Lisboa. A este culto se liga a crença de que a velocidade dos cavalos lusitanos resultava de as éguas serem fecundadas pelo vento Zéfiro.


O culto solar, saído das épocas mais remotas do Neolítico e do Bronze, aparece testemunhado em documentos arqueológicos do período romano. Prende-se às festividades solesticiais, expressas nas orvalhadas da manhã de S. João e aos festejos desse dia, inclusive as danças de purificação, que originalmente só incluíam a passagem do gado pelo meio de filas de fogueiras.


Sabemos que os lusitanos efectuavam danças religiosas nas noites de plenilúnio. Os planetas, Marte, Vénus e Lua seriam motivadores de danças rituis. Certos jogos, que ainda hoje se praticam nos meios rurais, poderão ter origem mágico-religiosa. Por exemplo: o medo da Coca que para as crianças funciona como uma espécie de papão a qual em alguns lugares é representado por uma serpente, accionada pelos rapazes, que percorrem as ruas para “meter medo” (Em Monção anualmente se festeja com a Coca). Os bichos-carpinteiros, segundo a crença popular, mantida em algumas povoações Beirãs, só atacam nas noites de Lua cheia.


O culto da lua, nas populações lusitanas prende-se à estrutura económica ganadeira, como podemos comprovar por Estrabão e, no norte da Península, ao matriarcado, pela influência daquela nos ciclos menstruais. Os amuletos em forma de Lua, que ainda continuam a ser usados, são sobrevivências desse culto, referido por Santo Isidoro nas Etimologias (XIX, 31, 7) e também pelo Cânon Septuagésimo do II Concílio de Braga. No Vale do Douro, como se vê por epígrafes romanas, existiu um extenso culto à Lua.


A astronomia lusitana estaria povoada de deuses, a avaliar pelas sobrevivências deste tipo de conhecimento entre os pastores. O Sete Estrelo ou Barca (nome porque é designada a Ursa Maior) e outras constelações, seriam do conhecimento empírico. Pastores beirões contam a história da Barca. As duas estrelas das guardas representam os bois, que os ladrões roubaram. Estes equivalem às outras duas estrelas do trapézio. A primeira da cauda representa o patrão, que acordou e veio ocorrer para alcançar os bois, que os ladrões vão tocando. A seguir, na cauda há uma estrela dupla: a patroa e a menina. Finalmente, e a alguma distância, a ultima estrela da cauda, representa o criado, que vai, pachorrentemente, na “retangueira”, isto é, despreocupado com o que está acontecendo ao amo.


À semelhança de outros povos indo-europeus, também os lusitanos tinham bosques e plantas sagrados. Hoje, a sua tradição perpetua-se nos galheiros com oferendas, que enfeitam os cortejos ou os bazares em dias festivos. A cornalheira do sul teria sido um arbusto sagrado, a julgar pelas histórias dos pastores. O mesmo podemos dizer do trovisco, que é considerada também como venenosa. Mas as árvores mais importantes entre as sagradas seriam o carrasco e o carvalho. O mesmo aconteceu com os celtas, o que não é de estranhar dada a origem comum e formas de actividade sócio-económica, na fase do pastoreio. Também os celtas se reuniam em bosques de carvalho. Uma famosa cornalheira é a de Santo Alifonso, sobranceira ao Sabor, no termo de Felgar. É multicentenária e nunca perde a folha. Botanicamente provoca problemas. Será uma sobrevivência da flora primitiva, ou uma importação trazida do sul pelos pastores. Os antigos pensavam que comendo bolotas do carvalho se podia adivinhar. A este propósito escreveu Lucano, poeta latino nascido em Córdova (36-65): “ Dryadae glandibus comestis divinare fuerant consueti”. O carvalho seria, pois, uma árvore cósmica, que ligaria a Terra ao Céu e ao Inferno. Era sinal de força, carácter que ainda não perdeu.


Outras plantas teriam valor mágico-religioso: a artemísia, o alecrim, a bela-luz e o rosmaninho. A abundância de nomes de árvores e arbustos na antroponímia portuguesa, os Carvalhos, os Pereiras, os Silvas, etc. são expressões de culto às árvores, fenómeno com correspondência em outras áreas ocidentais, que nas origens tiveram idêntica influência religiosa.


Os lusitanos acreditavam na existência de numens protectores da natureza, conhecidos entre os romanos por génios. O Corpus Inscriptionem Latinarum de Hubner indica alguns, em território lusitano: S.Pedro do Sul, Midões, Aramenha, aos quais J. M. Blázquez acrescenta um inédito de Coimbra. Estes génios ou numens eram defensivos e curativos, ou salutíferos, como acontecia com as fontes medicinais. Na Beira Alta conhecem-se desde remotas eras, certamente devido às deslocações dos pastores. As mais afamadas e já apreciadas em época romana, foram as de Manteigas, Cró, Alcafaxe, Unhais da Serra, Ariola, Longroiva, Vila do Touro e S. Pedro do Sul. Serviam-se delas para tratarem o reumatismo ou doenças de pele.


O culto das fontes e dos cursos de água é comum a todo o mundo que sofreu influências célticas. Sobrevive no nome de alguns rios e ninfas minerais. Na mitologia céltica a mais importante deusa da terra era Ana-Dana, mãe dos deuses. Mas, entre os lusitanos, na sua fase mais primitiva, os deuses confundiam-se com as forças da natureza e com a capacidade criadora. Não tinham o carácter antropomórfico, que podemos descobrir na família dos deuses, como resultado de uma influência helénica, desenvolvida através dos contactos com as colónias gregas, mediterrâneas, da França.


As divindades protectoras da família, os lares, persistem na tradição recordada na palavra lareira, pedra do lar, junto da qual se reúne a família e se acende o lume. Subsiste nas “alminhas”, que se erguem junto dos caminhos (lares viales), ou nas encruzilhadas. São particularmente frequentes na Beira, em Trás-os-Montes e no Minho. Também os lares eram divindades protectoras das gentilidades. Há um mapa com a distribuição dos lares, das deusas e deuses, segundo uma relação colhida de J. Alarcão, E. Etiene e G. Fabre.


Entre os lusitanos e os celtiberos haveria também um culto ao urso. A palavra urso traduz-se por arco na língua lusitana e também na celtibérica. Arco sobrevive em alguns topónimos (Arco, Arcozelo, Arcos, etc.). Perto do Sabor, em Felgar, situa-se o Val Durso (Vale de Urso).


O culto às pedras deu lugar a santuários cristãos. Assim na Serra da Lapa fizeram uma igreja para abrigar as pedras da lapa. Onde apareceu a Senhora. O mesmo se verifica em outras regiões da Europa, que tiveram cultos análogos antes da Cristianização. Na Áustria foi construída uma igreja abrigando pedras cultuais. A igreja de S. Wolfgang, em Abersée e a de Maria Schnee, ma Boémia, estão nestas condições, assim como outra, na Alésia, em Triguères (França). No Alentejo adaptaram um dólmen à capela. A estatua-menhir de Longroiva apareceu tombada num local conhecido por Cruzeiro novo, o que se pressupõe uma mudança de culto. Em S. Salvador do Mundo, majestoso santuário alcandorado sobre o rio Douro, perto de S. João da Pesqueira, verificasse um fenómeno parecido, pois a capela levanta-se sobre uma gruta pré-histórica, que devia ter sido local de culto. A Senhora da Penha em Guimarães e o Penedo das Mouras, em Ponte de Lima, são sobrevivências do culto das pedras.


A arte reflecte os grandes eixos de interesse da religião e da magia, como se verifica pela decoração predominante geométrica, mantida e continuada pelos pastores artistas, entre os quais os do Jarmelo (Guarda), que nos nossos dias continuam a tradição das colheres de madeira, das flautas e dos cajados, cuja decoração expressa um ritual mágico. Os trisquel`s e as suásticas castrejas, as ornamentações como as das pedras Formosas, dos portais, das cerâmicas e ourivesarias, são manifestações de culto, cujo significado se ignora. A etnologia comparada dá-nos testemunhos de manifestações rituais com algumas analogias entre algumas tribos africanas e ameríndias.


À semelhança do que aconteceu com outras gentilidades, a transmissão de doutrinas religiosas deveria ser feita pelos velhos. Não conhecemos referências a sacerdotes entre os lusitanos, como aconteceu entre os celtas, da mesma época, que ensinavam as doutrinas druidas sobre a imortalidade da alma e a metempsicose. Esses ensinamentos eram feitos em verso e a duração dos estudos exigia um aprendizado de pelo menos 350 memórias, ou factos históricos. Tivemos oportunidade de verificar processo análogo entre os quibalas e os bailundos de Angola. O fenómeno é característico de um determinado estádio.


As Hespérides correspondiam ao país dos lusitanos, situadas no Ocidente remoto, onde o Sol se punha. Na crença dos celtas, as Hespérides eram um país maravilhoso e, contrariamente ao que alguns autores escreveram, não significa o reino da Morte. É natural que esse mito celta de Mag Mell revestisse outra versão, entre os lusitanos, que, como está provado, sofreram influencias religiosas célticas. Mas pouco podemos avançar neste campo. Sabemos que as festas se ligavam profundamente aos mitos e ritos dos deuses e heróis, à semelhança do que sucedia com os gregos. Também se faziam corridas de cavalos após a morte de um herói, a que prestavam honras fúnebres, tal como fizeram com Viriathus.

Adriano Vasco rodrigues em: Os Lusitanos -Mito e Realidade- Academia Internacional da Cultura Portuguesa - 1998

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