Da Literatura à Arqueologia
Gil Vicente |
Foi a partir do final da Segunda Dinastia, com a influência do Renascimento Europeu e o renovado interesse pelos clássicos que os portugueses passaram a falar dos lusitanos ainda com mais veneração. Já em 1531 Gil Vicente escreveu o Auto da Lusitânia, representado perante a corte de D. João III quando nasceu seu filho D. Manuel. O auto trata das bodas de Lusitânia e Portugal, mas Gil Vicente, como muitas vêzes faz, mistura no enredo e nos diálogos muitos temas, personagens, e cenas que constituem como "diversões" à margem do tema maior.
Lusitânia é filha de Lisibea (Lisboa) e do Sol, e por ela se apaixonou um caçador grego de nome Portugal. Quando os amores parecem desencaminhar-se acorrem as deusas (diesas) gregas, com cuja protecção se decide então o casamento. Este o tema, que se desenrola da seguinte maneira: começa o auto com vários diálogos e recitativos de pessoas comuns acerca de assuntos de amor e outros, alguns picarescos como convém a uma farsa, até que entra em cena o Licenciado, que faz o papel de narrador e representa Gil Vicente; ele introduz o tema das bodas dizendo que o Sol viu Lisibea nua sem nenhuma cobertura (.) e houve dela uma filha tão ornada de sua luz, que lhe puseram nome Lusitânia, que foi deusa e senhora desta Província. Passados tempos, um famoso cavaleiro grego de nome Portugal ouviu falar da boa caça na serra de Sintra (serra da Solércia), e como este Portugal, todo fundado em amores, visse a formosura sobrenatural de Lusitânia, filha do Sol, improviso se achou perdido por ela .
O contexto mitológico greco-romano, a etimologia de Lusitânia a partir de luz do sol a origem amorosa de Portugal - tudo concorre para apresentar um ideal nacionalista enraizado nas origens romana e grega. Gil Vicente não fala em lusitanos nem em guerreiros, pois tudo se passa num plano simbólico, idealizado, procurando a identidade de Portugal num mito fundador que justifique e dê razão de ser a uma consciência (incipiente para ele) de nação. Note-se que a mentalidade de Gil Vicente ainda tem muito de
medieval, onde a Cristandade está acima do Reino, e o Reino é a República (coisa pública) pois o termo Estado ainda não era coerente, e onde a palavra nação tem outros significados que não os contemporâneos.
Por iso mesmo, como não está a fazer história mas ideologia e doutrina, cada traço tem vários aspectos, e o sentido da união de Portugal e Lusitânia não se esgota no amor e na boda: Portugal amante de Lusitânia é também seu descendente, como disse o Licenciado no verso anterior ao que citamos antes - ao falar de como o autor conheceu os segredos do antigo tempo passado acrescenta Em especial/ O antigo Portugal/ Lusitânia que cousa era/ e o seu original.
Essa Lusitânia não é elogiada apenas pelas guerras contra Roma e pelo valor dos seus guerreiros, mas também pela beleza e simplicidade. Diz ela mesma (o seu personagem) pouco depois do Licenciado a apresentar: Eu sou a filha do Sol/ e se o mundo teve flor/ eu sou as flores do mundo/ E da presunção maior/ Que sou tão fantasiosa/ E tão cheia de grandeza/ Que não prezo ser formosa/ nem prezo a quem me preza/ E prezo-me de generosa.
Camões |
Mas foi Camões, nos Lusíadas um dos grandes responsáveis por recordar os lusitanos como o modelo do povo heróico, como a Ilíada fora para os gregos, e a Eneida para os romanos.
O primeiro a usar o termo lusíadas parece ter sido Jorge Coelho numa publicação de 1536, mas foi o humanista André de Resende que o divulgou e explicou a sua filologia em cartas e obras menores por volta de 1545; é provável que Camões se tenha inspirado nelas para o título do seu poema épico. No segundo verso de abertura do poema - a ocidental praia lusitana - Camões dá seqüência a As armas e os barões assinalados; como estes dois versos são cópia quase literal da Eneida - Arma virum que cano/ Troiae qui primus ab oris - é evidente a intenção, muito ao modo renascentista de equiparar os portugueses aos romanos dando-lhes um antepassado clássico; Vasco da Gama é outro Eneias - aquele ilustre Gama/ que para si de Eneias toma a fama (I, 12); e vai mais longe, até fazer dos portugueses outros gregos - e vereis ir cortando o salso argento/ os vossos Argonautas (I, 18), enquanto que Duarte Pacheco Pereira é o Aquiles lusitano (X, 12). Aliás, um dos temas mais estudados e discutidos de todo o poema é a contínua invocação dos deuses greco-romanos para que protejam os portugueses: o peito ilustre lusitano, a quem Neptuno e Marte obedeceram (I, 3) isto é: o deus do mar e o deus da guerra puseram-se ao serviço dos lusitanos/portugueses.
Os lusitanos opuseram-se aos romanos, mas essa circunstância não contradiz a ascendência clássica dos portugueses: os lusitanos fizeram parte da História Romana, acabaram por ser cidadãos romanos, e são antepassados modelares dos portugueses, e é isso que importa a Camões e ao espírito renascentista. A inserção dos portugueses nos romanos não se faz apenas pela força e pelas armas, mas também pela cultura, de que é símbolo alíngua: (.)a língua,na qual quando imagina com pouca corrupção crê que é a latina(I, 33)
Já os Lusitanos são modelares porque foram guerreiros ousados e valentes, qualidades que ao longo do poema se demonstra terem sido apanágio dos portugueses.
Mas diz que os portugueses são descendentes dos lusitanos pelo sangue (étnicos ou por geração, diríamos hoje): nas sessenta vezes em que aparece o termo lusitano, mais quinze vezes o nome de Luso, e seis para Lusitânia, os lusos são os portugueses. Essa identificação, porém é ideal, pelas virtudes de liberdade, força, ousadia, valor que fazem dos dois povos um povo só, unido pelos deuses e pelo espírito:
E vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade (I,6)
(.)do valor da forte gente
de Luso não perdeis o pensamento(I,24)
(.)esquecerão os seus feitos no Oriente
se lá passara lusitana gente (I,30)
este aliás um tema repetido mais adiante:
qu'eu co'o Grão Macedónio e Romano
demos lugar ao nobre lusitano?(I, 75)
Muito mais se poderia explicar acerca do uso dos termos derivados de Luso no poema dos Lusíadas, mas esse é assunto a desenvolver noutro tipo de ensaio. O que importa destacar é o papel e o modo como Luís Vaz de Camões confirmou esse ideal da ascendência clássica dos portugueses. O tema foi sempre aceite e desenvolvido, ao ponto de já século XIX os estudiosos considerarem (o que Camões dissera) que os Lusitanos foram os antepassados dos portugueses, porque deles e principalmente deles todos os portugueses descendem.
Alexandre Herculano |
Na historiografia da segunda metade do século XIX alguns autores pôem reparos nesse facto, e Alexandre Herculano foi taxativo em negar tal ascendência: pela sua autoridade muitos citaram-no depois, mesmo sabendo-se hoje o erro de muitas das suas ideias, e Joaquim Pedro de Oliveira Martins, na História de Portugal, dá-lhe seguimento, sem maiores considerações. A partir desse final de século uma nova orientação e metodologia surgem no estudo dos lusitanos: a da Arqueologia e da Antropologia. Busca-se no estudo dos vestígios a confirmação correcção e complementos para o que os escritores gregos e romanos nos disseram.
Leite de Vasconcelos |
Apoiada nesta nova leva de estudos surge pouco depois a grande obra que determinou a orientação dos cientistas seguintes e até hoje permanece como inspiradora de todos os trabalhos: a investigação arqueológica e antropológica de Leite de Vasconcelos, sobretudo a publicada em As Religiões da Lusitânia (dois volumes, concluídos em 1905 e sucessivamente reeditados); outros arqueólogos portugueses vieram somar-se a esta minuciosa investigação; entre muitos autores e inúmeros trabalhos menores devemos citar: Mendes Corrêa com Os Povos primitivos da Lusitânia 19 (1924), e as Raízes de Portugal (1938); Martins Sarmento e Os Lusitanos; Damião Peres em Como nasceu Portugal (1938); a estes vieram acrescentar-se nesse início de século XX autores espanhóis como Bosch Gimpera com Etnologia de la Península Ibérica (1932), e Formación de los Pueblos de España, e também alemães como Schulten autor de Hispania.
Note-se, porém, que a discussão da relação entre Portugueses e Lusitanos, e entre estes e os Celtas não terminara, e havia autores que defendiam ambas as posições - a da ascendência real, e a da relação ideal. Esta poderia também ser estudada como ideológica, erradamente inserida por alguns no contexto do conservadorismo salazarista do Estado Novo; de facto a partir dos anos trinta as obras genéricas ou
panorâmicas sobre os lusitanos escasseiam, e dão lugar ou a estudos arqueológicos muito pontuais e de repercussão restrita, ou às considerações incluídas nos livros de História para as primeiras séries, do tipo nos ancêtres les Gaulois, variando entre nossos antepassados e primeiros habitantes desta parte da Península.
João Aguiar |
A partir da Revolução dos Cravos (1974) os estudiosos portugueses interessam-se muito mais pelo seu futuro e pelo que os une à Europa do que pela definição de antecessores ou antepassados próprios; é sintomático que a obra de maior sucesso neste campo foram os dois romances históricos de João Aguiar, um sobre Viriato - A Voz dos Deuses, de 1984, com vinte edições até 1997, e outro sobre Sertório - A Hora de Sertório, de1994, também reeditada, mas menos vezes. Seria interessante consultar as recensões e críticas literárias que certamente proliferaram na ocasião, para apreciar o significado dessa literatura, como os portugueses se vêem nela, uma vez que os romances que substituem (embora nela se apoiem) a Arqueologia e a História. Depois da revolução de Abril de 1974,o ensino da história de Portugal foi descurada e quase desprezada no sistema de ensino,o que é gravíssimo para a formação e manutenção de uma consciência nacional. Alguns, de forma estúpida e irresponsável, acharam e acham que ensinar história e exibir os símbolos nacionais nas escolas são resquícios de salazarismo.
Fonte: http://teotonio.ipv.pt/mailinglists/esi_gsr/pdfuTtUmDWjV4.pdf
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