Em plena crise, o pensamento inquieta-se e interroga-se; ele pesquisa as causas mais profundas do mal que atinge a nossa vida social, politica, económica e moral.
As correntes de ideias, de sentimentos e interesses chocam brutalmente, e deste choque resulta um estado de perturbação, de confusão e de desordem que paralisa toda a iniciativa e se traduz na incapacidade de encontrarmos soluções para os nossos males.
Portugal perdeu a consciência de si mesmo, da sua origem, do seu génio e do seu papel, de herói intrépido, no mundo. Chegou a hora do despertar, do renascimento, de eliminar a triste herança que os povos do velho mundo nos deixaram, as bafientas formas de opressão monárquicas e teocráticas, a centralização burocrática e administrativa latina, com as habilidades, os subterfúgios da sua politica e dos seus vícios, toda esta corrupção que nos tolda a alma e a mente.
Para reencontrar a unidade moral, a nossa própria consciência, o sentido profundo do nosso papel e do nosso destino, isto é, tudo o que torna uma nação forte, bastaria a nós portugueses eliminar as falsas teorias e os sofismas que nos obscurecem o caminho de ascensão à luz, voltando à nossa própria natureza. Às nossas origens étnicas, ao nosso génio primitivo, numa palavra, à rica e ancestral tradição lusitana e/ou celtibera, agora enriquecida pelo trabalho e o progresso dos séculos.
Um país, uma nação, um povo sem conhecimento, saliência do seu passado histórico, origem e cultura, é como uma árvore sem raízes. Estéril e incapaz de dar frutos.

Fogueira


No final do dia os nossos ancestrais ancendiam as fogueiras para cozinhar, aquecer e alumiar as suas habitações. Enquanto isso contavam-se histórias em seu redor. Mitos e lendas.

A lenda do belo suldório


        Madrugada fria. Madrugada triste. Madrugada com cheiro de tormenta. Inverno na natureza e nas almas. Vento cortante como o fio de uma espada. Mas Viriato – o pastor dos Hermínios – não sentia esse frio cortante. Nem essa madrugada triste. Nem o cheiro de tormenta. Direito, como bela estátua erguida num campo coberto por cadáveres dos seus compatriotas, dir-se-ia o génio da Vingança. À sua volta, os companheiros vivos que conseguira agrupar esperavam, submissos, atentos, as suas ordens. E forte, clara e precisa soou a voz do herói:
- Companheiros! Olhem em redor! Que estão vendo? Os corpos mutilados dos nossos irmãos pelo sangue, indignamente atraiçoados pela perfídia de um romano: Galba! Todos nós temos aqui um amigo ou um parente. Todos estamos a contemplar as bárbaras acções desses altivos vencedores do Mundo: crianças, mulheres e donzelas degoladas. Teremos nós coração para sofrer tanto? Não!  Vinguemo-los, pois! Vinguemos tantas nações devastadas por esses verdugos! Tudo é por nós! Juremos, neste mesmo local, um ódio eterno ao inimigo. Pelo sangue derramado, por todas as virgens, eu juro, por mim, não despir estas armas enquanto não vingar as suas mortes!
Parecia ecoar a voz do pastor no silêncio da montanha onde a morte imperava. E quantos o escutavam repetiram em coro o mesmo juramento. E foi então que, descendo a montanha por onde esvoaçavam aves de rapina, esses homens intrépidos, chefiados por Viriato, se espalharam pela Lusitânia para incitarem o povo a pegar em armas contra os romanos.
Em baixo, na planície, um sacerdote esperava-os. Vendo chegar o grupo, o sacerdote, com ar resoluto e olhos brilhantes, dirigiu-se àquele que parecia comandá-los.
- Meu filho! Em nome do deus Endovélico serás a partir deste momento o chefe supremo do exército dos pastores da serra. Assim, concedo-te o grande colar de oiro do comando!
Como resposta, houve um clamor de entusiasmo, gritando por Viriato. E lá em cima, na montanha, as aves de rapina faziam-se ouvir desde logo, no seu afã de recolherem as presas já quase apodrecidas…
Reunindo os povos lusitanos sob o seu comando, Viriato encetou a sua carreira de grande chefe, com verdadeiras proezas que assustaram Roma, obrigando os invasores a bater em retirada. E como os triunfos chamam sempre adeptos, em breve o exército de Viriato aumentou, chegando a ser criado o corpo dos suldórios, formado apenas por voluntários.
Ora, entre esses voluntários, surgiu certo dia um jovem soldado, de cabelos loiros e olhos azuis, figura frágil, quase feminina, que viera de muito longe com o desejo de ser, também, um suldório. Ao vê-lo, Viriato chamou-o à sua tenda. O jovem acorreu imediatamente O chefe recebeu-o com um sorriso quase trocista.
- Aceitaram-te como voluntário e ouviste bem as nossas regras. Não desististe! Mas repara que és ainda muito novo para morrer e, na verdade, com esse ar delicado…não acredito muito em ti como guerreiro.
No rosto do adolescente surgiu uma expressão de receio ou ansiedade.
- Não te preocupes com o meu aspecto, Viriato! Juro-te que lutarei como os melhores.
O chefe lusitano olhou o rapaz com estupefacção.
- Que voz a tua! Condiz com o teu corpo, que mais parece de donzela… Tenho receio que se riam de ti.
Embora pouco cheia, a voz do mancebo ouviu-se firme:
- Descansa que ninguém se rirá. E se alguém se atrever, a minha espada obrigá-lo-á a engolir o riso! Compreendes?
Viriato sorriu de novo.
- Compreendo apenas que esta não é vida para ti.
E o chefe dos lusitanos, tornando-se quase paternal, concluiu:
- Segue o meu conselho: regressa à tua terra e entrega-te ao amanho do campo.
O rapaz abanou a cabeça com energia.
- Não! Eu vivo para estar junto de ti, Viriato! Não me afastarei, portanto. Quer queiras, quer não queiras, hei-de combater a teu lado!
Viriato encolheu os ombros. Sempre gostara das pessoas que sabiam sustentar a sua vontade.
- Bem, faz então o que quiseres. Mas nunca me atribuas a culpa do que te venha a suceder no futuro.
O jovem sorriu. Que sorriso estranho, de invejável ventura! Depois baixou o olhar, curvando-se ligeiramente ante o seu chefe, e saiu da tenda de Viriato.
A tarde morria ao longe, num vagar que definia força. Resistência entre a luz e as trevas, entre a vontade e o destino.


A luta continuou. Luta indómita, sem tréguas. E as vitórias seguiram-se: Toledo, Évora, Viseu! Em todo o lado o jovem soldado de modos e falas estranhas se mostrou sempre como valente guerreiro. Viriato não pôde esconder a sua admiração. E certa tarde em que ambos se encontraram no campo, o chefe lusitano achou por bem elogiá-lo.- És na realidade um soldado extraordinário! Hoje, bem vi que me salvas-te a vida. Doravante quero-te sempre a meu lado.
O jovem corou de alegria e emoção. Tremia ligeiramente a sua voz, ao confirmar:
- Sim! Na vida ou na morte estarei sempre a teu lado!
Viriato sorriu.
- Não falemos em morte quando as vitorias se sucedem! És de facto um guerreiro, dos bravos, dos valentes. Contudo… deixa-me que te diga… Tens uma alma quase feminina!
O soldado mordeu os lábios. Surpresa? Melindre? Viriato notou o embaraço do jovem e tentou compensar a sua frase infeliz.
- Mas não te preocupes! Tivesse eu cem como tu e o Mundo poderia pertencer-me!
O soldado abanou a cabeça com ar quase lânguido, numa doce censura.
- Para quê tanto, senhor? Basta-te a Lusitânia!
O chefe olhou-o fixamente. O soldado desviou o olhar, furtando-se a um profundo exame do seu interlocutor. Mas já a voz de Viriato soava alegre, como poucas vezes acontecia.
- Tens razão, companheiro. Basta-me a Lusitânia para me dar o que fazer!
Voltou a fixar o jovem soldado, que mais uma vez desviou a sua atenção para um ponto indeterminado.
Viriato continuou a falar. Agora o seu tom de voz era diferente. Havia nele algo de indefinível e na expressão do seu rosto surgiu um estranho sorriso.
- Bem… Não pensemos agora em lutas e mortes. A tarde está bonita…Apetece-me ir visitar a minha linda Vanídia – eleita do meu coração – a qual há longo tempo espera por mim!
Fez-se um pesado silêncio. Viriato continuava olhando fixamente o jovem soldado, como se quisesse ler dentro dos seus pensamentos. Mas foi ele próprio quem voltou a quebrar o silêncio que os envolvia.
- Queres vir comigo?
Houve um movimento de surpresa da parte do jovem soldado. Como por encanto fugiu-lhe toda a anterior timidez e a sua voz, embora frágil, soou firme e quase áspera:
- Não, meu senhor. Para negócios de amor, certamente não precisareis de mim.
O sorriso de Viriato acentuou-se. Olhou o jovem com certo ar trocista e disse apenas:
- Tens razão. Em negócios de amor… não precisarei de ti!
E dando costas ao jovem, que cerrou os dentes num estranho assomo de amargura, Viriato seguiu, altivo, o seu caminho. Iria procurar Vanídia, o seu grande, o seu único amor! Vanídia, que há anos esperava ouvir dele uma promessa de imediato casamento. Mas a hora chegara. Era tempo de pensar no amor! Se a vida era um jogo de incalculável desfecho, por que desprezar os trunfos que caíam nas suas mão?
O chefe lusitano continuou descendo a montanha sem nunca olhar para trás. Um único pensamento o conquistara agora: falar a Vanídia, filha do rico Astolpas, e pedir-lhe perdão por tanta demora. Apressou o andar. Queria chegar ao seu destino antes de o Sol se esconder por detrás das montanhas. E quando a luz solar se despediu dessa face da Terra, foi beijar, num estertor, o rosto pálido e os olhos tristes do soldado que ficara lá em cima como estátua, fitando o desenvolto chefe a descer a montanha.



Era quase noite. No exterior, aquela luz indecisa que antecede a treva. Penumbra pesada como manto enorme. Mas na alma de Viriato havia luz, muita luz, como sol em pleno meio-dia!
Ao vê-lo, Vanídia correu para ele, olhos brilhantes de felicidade e de lágrimas.
- Viriato! Demoraste tanto! Cheguei a recear por ti!
Ele concordou, numa voz quase doce:
- Tens razão, minha bela, minha querida Vanídia! Mas valeu a pena a tua espera. Como vês, aqui estou e com boas notícias!
Ela sorriu-lhe, feliz. Imensamente feliz!
- Tenho tido conhecimento das tuas vitórias!
O chefe lusitano atraiu aos seus braços a sua bem-amada.
- Não se trata agora de guerra. Trata-se do nosso casamento.
Ela teve quase um grito:
- Será possível, Viriato? Será possível?...
Murchou de súbito a vivacidade da sua voz:
- Tens-me dito tantas vezes a mesma coisa!...
Viriato obrigou-a a encará-lo bem nos olhos.
- Querida! Se eu derrotar os exércitos de Caio Uminiano e de Caio Nigídio, juro-te que casarei imediatamente contigo!
Ela encostou a cabeça ao peito forte do herói e exclamou com emoção:
- Vencerás, Viriato!


Na verdade, Viriato venceu. E cumprindo a sua promessa casou com Vanídia, louca de felicidade. A cerimónia realizou-se em Vaaca e todos os lusitanos ali acorreram para felicitarem o seu chefe, transformando a casa de Viriato numa autêntica feira franca.
Um ano se seguiu. Um ano de paz com Roma. Um ano de amor… Todavia, Viriato não esquecia os seus companheiros, embora o seu exército já estivesse um tanto disperso. Só os suldórios continuavam unidos em torno do seu chefe, como um corpo só. E entre eles avultava o jovem soldado, já famoso pelas suas façanhas em prol de Viriato e da causa da Lusitânia.
Certa vez, Viriato levou Vanídia até à tenda do seu melhor guerreiro. Houve alvoroço com a chegada súbita do chefe. Depois de dirigir uma palavra grata a cada um dos seus suldórios, chamou de parte o jovem soldado, que mostrava uma palidez como nem nas horas de combate o tomava. Por fim, indicando-o à sua linda esposa, disse:
- Vanídia, eis quem mais admiro depois de ti. Comecei por não acreditar nas suas aptidões para soldado, devido ao seu aspecto frágil. Contudo, hoje considero-o o melhor dos meus guerreiros!
Vanídia sorriu ao jovem:
- Daqui em diante, também eu te considerarei como meu amigo!
Sério e sempre pálido, o soldado respondeu:
- Vanídia… A minha dedicação por teu esposo é tão grande, que enche todo o meu coração e nem sequer para ti encontrarei lugar vago.
Viriato riu. A sua voz soou precipitada:
- Ouviste, Vanídia? Alem de valente, é também trovador!
Fez-se um silêncio impressionante. Vanídia e o jovem soldado fitaram-se por um momento. Depois, a esposa de Viriato sorriu ao marido e pediu-lhe que a levasse dali.
E uma vez mais, no cimo do mons Herminius, um estranho soldado, de olhar ao mesmo tempo doce e triste, ficava como estátua, vendo o seu chefe descer a montanha…


A vida é uma roda que gira, às vezes quase em vertigem. O tempo passou. E então, não sendo possível aos romanos vencerem pela força o chefe de rebelde e altiva Lusitânia, valeram-se da astúcia – que é por vezes caminho da traição.
É de todos os tempos a existência de almas fracas, capazes de tudo por uma ambição fugaz. Também na Lusitânia houve traidores. Traidores que levaram Viriato à morte a troco de dinheiro. De noite, aproveitando a hora do descanso, entraram na tenda de Viriato, apunhalaram-no e levaram-lhe a cabeça para a apresentarem ao cônsul romano!
Entretanto, no arraial lusitano, alguém dera subitamente o alarme. Alguém que chorava convulsivamente abraçado ao corpo decapitado e escorrendo sangue de Viriato – aquele que fora o glorioso chefe dos exércitos lusitanos. E esse alguém foi o jovem soldado desconhecido.
A dor encheu o acampamento. A dor e a indignação. Uma algazarra enorme surgiu, cortando a noite, Viriato era amado até à idolatria. Foram-lhe feitos solenes funerais. A meio do acampamento levantaram uma enorme pira, onde seria queimado o corpo de Viriato, para depois guardarem as cinzas. Envolto no seu manto de comando e levando o grande colar de oiro – a viria – o que fora valoroso chefe lusitano em breve começou a arder. A cerimónia iniciou-se com pompa, seguida dos rituais sacrifícios. Os suldórios desafiavam-se em combate, como holocausto àquele que haviam jurado defender até à morte. Mas o exército reclamava novo chefe. De súbito, alguém apontou o vulto do jovem pálido, rosto macerado pelas lágrimas, que parecia desafiar o próprio fogo onde o corpo de Viriato ardia. E diziam:
- Só ele! Só o companheiro dilecto de Viriato pode substitui-lo!
Um clamor saiu de todas as bocas, aprovando a escolha, Porém, o jovem soldado, sem uma palavra, cabelos soltos ao vento, aproximou-se mais da pira onde o fogo ardia. Depois, num gesto dramático, tirou a couraça e em seguida a túnica interior que lhe cobria o corpo, mostrando aos olhos espantados do exército em peso um busto Formosíssimo de mulher. Ouviu-se Oh! de pasmo. Mas a que fora durante tanto tempo o mais valente dos suldórios gritou então:
- Sim, sou mulher! Por amor a Viriato suportei toda esta aventura. Disfarçada de homem, tornei-me seu suldório para estar sempre a seu lado! Ele amava outra mulher. Não podia aspirar ao seu coração. Agora que o mataram, a vida já não tem valor para mim. Morro com Viriato, porque vivi para ele!
E num gesto súbito, a mulher-soldado lançou o seu esbelto corpo às chamas ardentes…
Os homens ficaram perplexos! A tarde, porém, morria sem queixumes, concedendo ao fogo o direito de a substituir na sua luz.
Viriato deixara de existir. E com ele ardia agora o corpo daquela que jurara estar a seu lado para sempre, na vida ou na morte!

Lendas de Portugal - Gentil Marques - Lendas heróicas - Âncora Editora


Lenda da bezerra de Monsanto


Nesses tempos que se perdem nos longes da memória, era assim mesmo: o somatório dos anos não cansava os homens que se entregavam abnegadamente à defesa dos seus ideais…
Por isso, Monsanto, ali bem perto da Idanha-a-Velha, a famosa Egitânia de então, aguentava estoicamente, havia sete anos, um cerco brutal posto pelo cônsul romano Lúcio Emílio Paulo.
Sete anos de tragédia, de luta selvática, de ansiedade e de dúvida. E, igualmente, sete anos de fé, de esperança, de fidelidade. E de arreigado amor à terra-mater!


Tinham passado tormentos e amarguras. Tinham morrido os entes queridos. Tinham visto destroçadas as suas próprias cabanas. Tinham sofrido misérias e desgraças e dores.
Mas não se rendiam!
Diante dos olhos amortecidos que o fitavam, o velho chefe lusitano voltou a falar mais uma vez.
- Custe o que custar, temos de resistir ao invasor… Nós não nos renderemos, nem que nos continuem a sitiar por mais outros sete anos! Mesmo que vamos todos, um por um, morrendo à fome… Enquanto um de nós existir, esta terra será nossa!
E as vozes dos outros repetiram, em tom ainda vibrante e desesperado:
- Esta terra será nossa!


         Esse velho chefe, que assumira o comando dos sitiados, já vira morrer sua mulher e os seus três filhos mais velhos.
Restava-lhe apenas uma filha, ainda muito jovem, e que era agora a melhor companheira de seu pai.
Assim ele temia ansiosamente pela sua existência.
- Oh, minha filha, não te exponhas!... Tenho tanto medo por ti… Acredita: se um dia eles te descobrem, são capazes de matar-te, como já mataram os teus irmãos!
Mas a jovem sorria, com a valentia irreverente própria da juventude.
- Não pense nisso, meu pai… Onde estiver, estarei sempre a seu lado. A luta não me amedronta!
E inclinando-se para ele, num sussurro de confissão:
- Lembre-se que foi isso que eu jurei, quando a mãe foi assassinada por eles!
O pobre velho baixou a cabeça. Para esconder as lágrimas. Para tentar ser mais austero.
- Lembro-me, sim, minha filha… Mas lembra-te, tu também, que és o único bem que me resta na vida. E eu preciso de ti!
Fez-se um silêncio entre ambos. Mas não durou muito. O coração do pai falou mais alto que a sua própria vontade.
- Ah, se ao menos eu te pudesse salvar… se conseguisse levar-te para o outro lado do monte, minha filha!... Aí serias certamente mais feliz, com as tuas ovelhas e com as tuas bezerras!
A rapariga ergueu-se e alisou os longos cabelos que lhe caíam até às costas.
- Deixe-se de sonhos, meu pai, por favor!... Bem sabe que eu ficarei aqui, enquanto o pai aqui estiver. E o rebanho ficará comigo. O pai bem sabe que os homens precisam do rebanho… Cada vez mais!
O velho chefe fitou a filha com um olhar triste, muito triste, e voltou a baixar a cabeça.
- Tens razão. Os homens precisam do rebanho… e cada vez mais!


Pouco tempo passara sobre este diálogo, quando o velho chefe mandou chamar a filha à sua mísera tenda de combate, que mal se conseguia aguentar de pé, depois de ter sofrido tantas intempéries da natureza e dos homens.
- Escuta, minha filha… Tens de fugir!
Altivamente, ela encarou-o. Frente a frente. Olhos com os olhos. Vontade contra vontade.
- Já disse que não fugiria daqui, meu pai!... Fiz um juramento, devo cumpri-lo!
O velho chefe suspirou fundo e agarrou a jovem pelos ombros.
- Mas isto vai de mal a pior!.. Todos se têm sacrificado… E para quê, minha filha?... Para quê, se nós acabaremos por ser vencidos?
Num gesto brusco, quase de revolta, ela libertou-se das mãos do pai.
- Cale-se, por favor!... Que ninguém o oiça!... Pois o pai esquece-se de que é o chefe, que os homens e as mulheres que restam confiam plenamente em si?
Num crescendo de entusiasmo, a rapariga ergueu os braços ao céu.
- Vamos meu pai! Fale aos seus homens e levante-lhes o ânimo!... Eles estão habituados às suas palavras de coragem, de fé, de esperança na vitória final…
E inclinando-se para ele, como que a querer transmitir-lhe o seu próprio entusiasmo:
- Não esqueça… A esperança na vitória final!
Mas desta vez enganava-se. O pai não reagia. Estava visivelmente desmoralizado, perante a crescente brutalidade do assédio. E confessou amargamente:
- Oh, minha filha, minha única filha, então não compreendes? Não vês a miséria que nos oprime? A fome e a sede que nos atormentam?
- Tentaremos arranjar mais alimentos… mais água…
Num suspiro de dor e cansaço, o velho chefe abanou a cabeça.
- Impossível, minha filha!... Os romanos descobriram as últimas passagens secretas e já as bloquearam por completo… Nada nos resta!
Foi a vez dela se sentir desesperada.
- Mas… então…
E ele confirmou em voz lenta, arrastada, como que pesando todo o peso da sua enorme angústia:
- Eu próprio… já perdi a coragem… a fé… e a esperança… Agora, daqui em diante, acredito que todos os sacrifícios serão absolutamente inúteis… Os romanos não deixarão vivo um único de nós!
E calou-se. Porém, no ar estranho e quente parecia pairar ainda o eco das suas palavras. Até que a rapariga, num rompante de nervos, conseguiu rasgar o véu da impotência que já os envolvia.
- Não! Não pode ser assim, de modo algum!
E erguendo a voz, autoritária e solene como nunca o fora, gritou para seu pai:
- O senhor é o chefe… o nosso chefe! Porte-se, portanto, como um verdadeiro chefe!
Tão persuasivo era o tom da sua voz, que o homem se sentiu chicoteado na sua própria consciência.
- Sim, sou o chefe!... Não posso nem devo pensar apenas em nós os dois!
Tenho também de pensar nos outros que confiam em mim!
- Isso mesmo, meu pai! É dessa maneira que eu gosto de o ouvir falar, que todos nós gostamos de o ouvir! E agora, diga-me: que vamos fazer para não morrermos de fome?
- O velho chefe, reencontrando a sua perdida e gasta energia, apontou para fora, energicamente:
- Vai, minha filha!... Vai e sacrifica o nosso último rebanho. É a última reserva que nos resta. Divide o rebanho pelos homens, pelas mulheres e pelas crianças. Pelo menos poderemos aguentar mais uma semana… Depois, veremos! Será o que Deus quiser!
E a rapariga, persignando-se, repetiu como num eco:
- Será o que Deus quiser!


        Mas a semana depressa passou. Noites e dias sumiram-se num verdadeiro crescendo de aflição.
E a tragédia começou a rondar cada vez mais perto, cada vez mais perto…
Até os soldados romanos davam mostras de perceber a dramática situação. A fome deve ter também um cheiro que anda nos ares…
O cônsul Lúcio Emílio Paulo resolveu aproveitar o ensejo e gritou para o alto do monte:
- Sois imbecis ou insensatos? Pois não vedes que é que é só por teimosia de um velho egoísta que prolongais o vosso sofrimento?
E logo, lá do alto, começou a voz do velho chefe, das fraquezas fazendo forças:
- Calai-vos, Lúcio Emílo Paulo, cônsul sanguinário e indigno!... Sou eu, eu, o velho egoísta, que estou a responder-vos. Os meus homens não sofrem nem querem render-se. Ouvistes bem? Aqui não entrareis, lobo romano, enquanto um de nós estiver vivo!
Houve uma breve pausa. Como que a ganhar alento para gritar mais forte. E os berros do cônsul romano subiram ao monte, como ameaça de morte.
- Então sois ainda mais imbecis do que eu pensava!... De que vos serve a vossa impertinência?... A fome não perdoa! E vós morrereis todos de fome!... De fome!


O velho chefe já não respondeu. Sentia que, de facto, tudo chegara ao fim. Ao extremo dos extremos. E limitou-se a dizer aos que olhavam num apelo de ansiedade:
- Nada mais nos resta, amigos… Os romanos já sabem que estamos a morrer de fome, que não podemos continuar a resistir… E nós já somos tão poucos!...
Calou-se, numa breve indecisão acerca do que ia dizer mais. Mas as palavras escaldavam-lhe o Cérbero e o coração. E não fugiu a dizê-las:
- Penso que o melhor é entregarmos as armas.
 Os homens baixaram a cabeça. S mulheres abafaram os soluços. Mas uma voz ergueu-se inesperadamente.
- Nunca, meu pai! Nunca permitirei que se faça uma coisa dessas!
Todos olharam na direcção da rapariga. O velho chefe avançou um passo. Ainda perplexo e duvidoso.
- Pois tu… tu, minha filha… atreves-te a discutir publicamente uma ordem que eu dou?
Foi a vez de ela avançar um passo. Com calma. Com segurança. Com altivez.
- Meu pai, aqui eu sou um solado como todos os outros. Não falo com o pai… falo com chefe. E creio que estou a falar em nome de todos eles… Nós não nos queremos render!
Um clamor de vozes coroou as suas últimas palavras. Os homens e as mulheres passaram imediatamente para seu lado. Concordavam com ela. Estavam com ela.
O velho chefe ainda quis defender o seu ponto de vista, embora sentindo que perdia autoridade.
- Sois nova, minha filha, muito nova ainda… Olhai para essas caras… Vedes esses olhos sem brilho, esses braços sem forças, esses corações que mal podem bater, de tanta fraqueza… Achas que vale a pena continuar?
A resposta veio, pronta e franca:
- Acho que sim, meu pai! Acho que vale a pena!
Novo clamor de vozes rompeu. O entusiasmo voltava a retomar os homens e as mulheres. Sentiam-se renovar para a luta! E, pedindo a todos que se aproximassem, a rapariga falou então em voz baixa, quase em segredo.
- Eu guardei uma bezerra para este momento! Está gorda e anafada…
Mais espantado se mostrou o velho chefe. Dolorosamente espantado.
- Uma bezerra?... Estais louca, com certeza!... Pois para que nos serve uma miserável bezerra, para todos nós, se ela é pouca para um só?...
Num meio sorriso, a rapariga explicou:
- Perdão, meu pai… A bezerra que eu guardei não é para nenhum de nós!
- Que dizeis?... Que ideias são as vossas?
A rapariga abraçou todos com um olhar.
- Se não se importam, maus amigos… eu terei primeiramente de falar com o meu pai… em segredo!
O velho chefe encolheu os ombros, como que resignado.
- Em segredo? Oh, mey Deus!... Minha filha enlouqueceu, certamente… Uma bezerra…e um segredo!... Enfim, meus amigos, voltai aos vossos lugares… Eu irei escutar o que minha pobre filha tem para me dizer!




O que se passou entre pai e filha, ninguém soube… Somente na manhã seguinte, viram que o velho chefe, parecendo criar novas forças nas suas pernas já trôpegas, subia ao ponto mais alto do monte, levando a acompanhá-lo a sua jovem filha e uma bezerra bem robusta.
Depois, lá de cima, com a maior energia que lhe era possível, a voz do velho chefe caiu sobre o acampamento inimigo.
- Oh, grande Lúcio Emílio Paulo, a quem chamam o Macedónio, pelas tuas brilhantes vitórias na Macedónia, escuta o que vou dizer…
De baixo vieram gargalhadas fortes, antes de soar a voz do próprio cônsul.
- Estou a ouvir-te, velho idiota!... Penso que compreenderam, finalmente a inutilidade dos vossos esforços. Querem render-se, não é verdade?
E o velho chefe, a plenos pulmões respondeu:
- Não, Lúcio Emílio Paulo, nós não nos queremos render! Nós poderemos resistir até que vós para aí apodreçais de fome, de frio e de aborrecimento!
Novas gargalhadas. E, no meio das gargalhadas, uma pergunta irónica:
- E vós… que fazeis?
Seguras e vibrantes, as palavras do velho chefe encheram de pasmo os lutadores de ambos os lados:
- Nós… temos tudo o que desejamos! E como prova do que digo, cônsul Lúcio Emílio Paulo, aqui te ofereceremos esta bezerra que nos sobrou do banquete de ontem à noite!
E no mesmo instante, a um gesto do velho chefe, a rapariga resolutamente lançou para baixo a bezerra gorda e anafada que ela guardara avaramente para tal efeito.
Por entre o tumulto de vozes provocado pela estranha e inesperada oferta, ainda se ouviram as palavras finais do velho chefe:
- Que vos faça bom proveito essa bezerra, cônsul Lúcio Emílio Paulo!...
E se quiserem mais, é só dizer!
Na tarde desse mesmo dia voltou a ouvir-se, de repente, a voz do cônsul Emílio, vinda de lá de baixo, da planície. Mas já sem a arrogância habitual. Como que despeitada e aborrecida.
- Guardai as vossas outras bezerras, que nós um dia as viremos buscar… Agora, chamam-nos de Roma e já perdemos aqui demasiado tempo… Mas nós voltaremos!
Quase correndo, tropeçando aqui e além, louco de alegria, mal podendo acreditar no que os seus ouvidos escutavam, o velho chefe voltou a subir ao mais alto do monte. E a gritar, numa renovação das suas próprias energias:
- Pois voltai, voltai, que nos encontrareis à vossa espera!... E haverá sempre uma bezerra a mais para vos oferecer!
Risadas fortes emolduraram as suas palavras. Porém, desta vez, não eram os soldados que riam: eram os sitiados, que rodeavam a jovem filha do velho chefe, dando largas à sua alegria e aos seus brados de vitória final!...
E assim, enganados pelo estratagema, julgando que os sitiados possuíam bastantes alimentos, os soldados romanos se retiraram…

Lendas de Portugal - Gentil Marques - Lendas heróicas - Âncora Editora


O Rei Das Serpentes

Após vários anos, errando pelas terras distantes do sul, enfrentando todo o tipo de vilões, salteadores, bandidos, assassinos e animais selvagens. Brigus regressava agora à terra que o vira nascer. Chovera copiosamente durante todo o dia, abrandando só pelo lusco-fusco. O terreno estava escorregadio e enlameado. A cada passo que dava as suas botas de pele de porco pareciam enterrar-se cada vez mais fundo. No entanto a perspectiva de passar outra noite ao relento não lhe agradava de todo. Em breve seria noite cerrada e não era uma simples terra barrenta que o iria impedir de pernoitar junto a uma desejável fogueira.
Consequentemente, instantes depois avistou o outeiro sobranceiro onde, apenas há três gerações, o clã do javali se havia estabelecido. Com a chegada da agricultura e da pastorícia que depressa se disseminaram por toda a Finisterra, não tiveram mais a necessidade de partirem a cada novo Inverno. Escolhendo assim aquela região cruzada por mil rios, repleta de árvores de fruto e abundante em caça, para se fixarem.
Estranhamente a pequena comunidade estava imersa num silêncio pavoroso. Facto pelo qual o jovem caçador, sentindo que poderia correr perigo, se deteve a meio caminho. Sem a protecção da vegetação do bosque, a brisa que se fazia sentir enregelou-lhe o pescoço desprotegido. Enquanto retirava a capa de linho grosso da sacola que carregava às costas, juntamente com a sua lança, perscrutou as imediações.
Apenas escutou o rumorejar do ribeiro confinante e nada mais. Os cães não ladraram à sua chegada e as crianças não vieram ao seu encontro, tal como é habitual quando um forasteiro chega a um lugar. No final da jornada diária acendiam-se as fogueiras, para cozinhar e contar histórias, no entanto não haviam quaisquer vestígios de fumo. Nas cercanias não crescia qualquer espécie de vegetação e os animais pareciam ter desaparecido como por magia. Afrouxando o cinturão de couro, para que pudesse puxar pelo punhal rapidamente, avançou.
A paliçada estava danificada em vários locais. A argila das choupanas estava gravemente fissurada e o colmo dos telhados descuidado. Tudo indicava ter havido ali um ataque. Porem, a avaliar pela a ausência de vestígios recentes e pela degradação do povoado, tal havia acontecido já há anos. Olhando em redor, Brigus avistou no lado oposto aquele em que estava, algumas dezenas de estátuas com forma humana. Uns pareciam fugir e outros pareciam lutar, mas todos exibiam uma expressão de horror. Algo muito tenebroso havia petrificado o seu clã.
De súbito, Brigus sentiu-se observado. Poisado num das vigas da paliçada, um corvo mirava-o atentamente. O caçador sentiu perigo e puxou pelo punhal. No interior de uma das choupanas algo se mexeu e o silêncio que imperava no local foi quebrado pelo ruído de uma peça de loiça a quebrar-se aparatosamente. O pássaro negro bateu asas e levantou voo. Ali podia estar a resposta para todo aquele mistério. Sem se deter, avançou destemidamente de punhal em riste.
Ao entrar na choupana o caçador reparou nos cacos de um cântaro de barro que estavam espalhados por toda a parte. O braseiro que existia ao centro da pequena habitação estava apagado, no entanto depois de o observar atentamente concluiu que não fazia muito que havia sido extinto. Junto a uma das paredes, junto a outros objectos de barro empilhados, estava uma manta de lã negra que cobria algo compacto. De súbito algo se movimentou debaixo da mesma, despertando a atenção do caçador. Ao puxar pela manta este deparou com um velho assustado, cadavérico e andrajoso que termia de pânico.
- Quem és tu, pobre criatura? – inquiriu decidido, mostrando assim que estava controlador da situação.
- Por favor não me faça mal, por favor! – suplicou o velho, atirando-se para os seus pés.
- Sou o filho mais novo de Quangeius, – revelou o caçador – Brigus. E tu quem és, afinal?
 - Pelos Deuses, julguei que fosses mais um mero salteador, – redarguiu o velho, recompondo a sua postura, – ultimamente têm passado muitos por aqui. Bem-vindo a casa, ou pelo menos aquilo que resta dela. Eu sou Caburoniq, não me reconheces jovem Brigus?
Brigus deu um passo atrás, esfregou os olhos e fixou o olhar no rosto do velho homem. A brisa agitou o colmo do telhado. Um pequeno cão, escanzelado e pelado, entrou na habitação, indo enroscar-se nas mantas que ali se achavam. O velho sorriu e o caçador colocou-lhe uma mão no ombro, retribuindo-lhe o sorriso.
- É bom reverte, meu sábio velho contador de histórias – disse alguns instantes depois. – Conta-me, então, o que por aqui se passou.
- Contarei se me trouxeres um pouco de lenha, em breve anoitecerá e ficará frio, devemos acender a fogueira.
- Vou, então, mas não demoro!
Caburoniq estendeu a Brigus uma pequena machada, com cabo de madeira e cabeça de sílex, apressando-se a ordenar a confusão em que estava a pequena cabana. O jovem caçador precipitou-se para o exterior e dirigiu-se para o bosque. A brisa estava agora incessante e à sua passagem as gentes de pedra pareceram gemer, implorando para que ele as libertasse da infeliz condição em que se achavam.
Por breves instantes, Brigus, deteve-se a observá-las, parecendo ver uma lágrima cristalina a deslizar suavemente pelo rosto de uma pequena menina, cuja mãe a segurava protectoramente ao colo. Julgando ser um devaneio da sua mente desviou o olhar, aconchegou a sua capa e foi buscar a lenha que o velho lhe pedira.   
Quando Brigus regressou à pequena habitação ocupada por Caburoniq, esta estava já recomposta. O velho dispôs a lenha cuidadosamente, no local a esta destinada e fez lume, colocando sobre este um crestado receptáculo de barro, no qual preparou um caldo de espargos. O pequeno cão chegou-se ao lume, procurando-se aquecer. Próximo da entrada, o jovem caçador observava o seu anfitrião, olhando por vezes para o exterior para se assegurar de que estavam sós. A sua intuição persistia em alertá-lo de que ali o perigo era constante.
- Está pronto – disse Caburoniq, quebrando o sinistro silêncio que se havia instalado.
- Há dias que desejava um abrigo e uma refeição quente, no entanto esta sensação de perigo iminente não me deixa apreciá-los comodamente – confessou o jovem.
- Desde do fatídico dia da tragédia que não acontece aqui nada, – revelou o velho –, a não ser a visita inusitada de um ou outro salteador.
- Acredito em ti, mas o meu instinto de caçador diz-me desde que aqui cheguei que estou a ser observado.
- São os espiões dele – revelou o velho.
- Os espiões de quem?
- Do rei das serpentes!
- Mas afinal quem é esse rei das serpentes e o que se passou aqui?
- Vou então contar-te tudo. A velha sapiente que indicou estas terras ao teu pai para estabelecer o clã, esqueceu-se de lhe dizer que estas já eram habitadas.
- Ai sim! E por quem?
- Pelos homens serpente – revelou Caburoniq, estremecendo de medo ao dizê-lo.
- De onde vieram eles?
- Do norte, das montanhas proibidas!
- Das montanhas proibidas?
- Pouco depois da morte do vosso pai, quando tu partiste, o teu irmão Boelius foi explorá-las e nunca mais voltou. Pelo que o teu irmão Lubaurus, tendo lhe sucedido na liderança do clã, as interditou para todo o sempre, a fim de evitar mais desaparecimentos.
- E a seguir o que se sucedeu?
- Deu-se uma invasão de serpentes, tendo sido várias as mulheres e crianças que foram atacadas. Depois as culturas secaram e mirraram e por fim os animais sumiram como por magia, restando somente as suas ossadas.
- Foram as serpentes também?
- Não, elas não passam de pequenos animais que apenas seguem o seu instinto de sobrevivência. Foi o Rei das serpentes e o seu exército.
- E como é esse rei das serpentes?
- Enorme, mais ou menos com a altura de oito homens juntos. Tem umas mandíbulas descomunais e é capaz de matar apenas com o seu olhar. Aqueles que não morrem ao olhar-lhe nos olhos ficam petrificados.
- Como lhe sobreviveste tu?
- Na altura em que apareceram, regressava do rio e ao perceber o que estava a acontecer escondi-me, cobardemente.
- Cobardemente! Será alguém cobarde ao zelar pela própria vida?
- Hum.
- Imagina se também tens sido transformado em pedra, quem me contaria agora o que se passou?
- Provavelmente ninguém!
- Cada um tem o seu papel nesta história e o teu foi sobreviver para contar o que se passou aqui.
- Nunca tinha pensado nisso – disse o velho, agora um pouco mais tranquilo. – E o teu papel, qual é?
- Não imagino sequer, – redarguiu sorridente – é isso que pretendo descobrir.
- Hum.
- Não estão todos lá fora, pois não, para onde fugiram os restantes?
- Estão na caverna.
- Voltaram para a caverna?
- Sim!
- Então é para lá que vamos!
- Vamos? Eu não vou, morro de medo só de pensar num possível encontro com tais criaturas.
- Pois bem, então, partirei sozinho aos primeiros alvores.
- Boa sorte!

    Deixando Carburoniq a dormir profundamente, com o pequeno cão aninhado na sua enxerga de peles, Brigus partiu. A partir do ocidente, o sol tingia o céu de amarelo esbatido, porem tudo ali permanecia inerte e em silêncio. A angustia e o desespero nos olhos das estatuas de pedra.
A voz interior que alertara Brigus para um perigo iminente, a quando a sua estadia na aldeia, persistiu audível, mesmo já quando este se havia embrenhando nos bosques confinantes rumo às montanhas rochosas onde se achava a caverna que o seu clã havia habitado durante centenas de estações e que agora lhe servia novamente de refugio. Já não estava longe do seu destino. No entanto, sentindo-se em perigo iminente manteve-se em alerta. Cada passo que dava era uma incógnita. Tudo poderia acontecer!
Sentia já o calor do sol nos ossos, quando vislumbrou no horizonte as montanhas para onde se dirigia. Ali os pássaros cantavam e as árvores tinham frutos. Ansiava por rever os irmãos. Por isso acelerou o passo e quando já descia a vertente que o conduziria ao luxuriante vale onde se achava a caverna, onde segundo Caburoniq estes estariam, escutou um silvo por entre os arbustos. Aquele ou aquilo que o observara, desde que chegara às cercanias, manifestava-se agora.
- Quem está aí? Mostra-te se tens coragem – bradou. O cabo do punhal a vincar os dedos nodosos.
Escutou-se um breve restolhar, os arbustos estremeceram e uma figura atarracada surgiu na sua frente.
- Quem és tu mulher? - inquiriu, continuando a segurar o punhal. Embora a mulher aparenta-se ser inofensiva, como por vezes o perigo costuma advir donde menos se espera, decidiu não facilitar.
- O meu nome é Cailleach e sou a guardiã deste lugar – declarou serenamente, a voz constante e profunda, prenunciadora de um profundo conhecimento.
Era velha, muito velha, parecendo ter sido sempre velha, desde já do começo dos tempos. A sua pele estava engelhada e seca e os seus cabelos eram brancos como a neve. Apenas tinha um dente no maxilar superior e outro no maxilar inferior, o que a par da verruga que exibia no seu nariz adunco lhe dava um aspecto no mínimo caricato.
- A velha sapiente?
- Sim! Há quem me chame assim.
- Como podes, com esse aspecto, ser a guardiã de um lugar?
- Em tempos fui bela e jovem, no entanto a roda do tempo gira e não poupa ninguém. Os anos de luta com o rei das serpentes desgastaram-me até este ponto – confessou, sempre serena.
- Pelo que sei, parece-me que estás a perder a batalha – disse o jovem, indiferente.
- Estou velha e cansada e o meu tempo está a acabar, chegou a hora de dar o meu lugar a outra – disse, agora acabrunhada.
- E procuraste-me tu para me dizeres isso?
- A escolhida vai ser hoje sacrificada ao maldito – revelou, o desespero a vincar o seu rosto. – Deixa que o teu povo se abrigue na caverna, no entanto todos os anos exige-lhe pela época das colheitas metade das mesmas e uma virgem. Se nada for feito este lugar ficará sem quem o proteja e o povo definhará.
- Porque ninguém faz nada? – perguntou, incrédulo.
- Estão tomados pelo medo.
- E o que posso eu fazer para evitar a nossa ruína?
- És o mais destemido e venturoso de todos eles. Vai, desce até à caverna, não deixes que os lacaios do maldito levem a virgem, comanda o teu povo e leva-o a enfrentá-los – exortou, novamente tranquila.
- Isso não irá despontar a ira do maldito?
- Certamente.
- E, então, como faço eu para o derrotar?
- Não sei, terás que te desenvencilhar, mas agora vai, por favor, não deixes que a virgem lhe seja levada.
- Espero que isto valha a pena – declarou o caçador, começando a descer a vertente em direcção à caverna.
- Cada um só tem o que merece – redarguiu Cailleach. – Procura o seu ponto fraco – acrescentou, apressadamente.
Briugus voltou-se para a encarar, mas esta já havia desaparecido… porem no sítio onde estivera estava agora, estendida sobre a urze, uma lança, afilada e com a altura de dois homens, forjada num polido material que jamais alguma vez havia visto. Sentiu-lhe o peso e manuseou-a, cortando o ar ligeiramente. Para além de lhe atribuir mais mobilidade, não pesava mais do que a sua, a qual era de madeira Uma pequena ajuda, pensou.

 
Quando o jovem caçador alcançou a encosta rochosa onde se achava a embocadura da caverna que abrigava o que restava do seu povo quedou-se a olhar para esta. Bem no centro da mesma estava um montículo de terra, onde bem no centro fora cravada uma estaca de madeira. E presa a esta a mais bela das mulheres que já alguma vez havia visto.
Uma figura imponente de tez pálida que não passava despercebida aos olhos de um homem. Tinha um rosto sólido com as maçãs salientes, um nariz soberbo e uns lábios perfeitos e suculentos. Uma cascata de caracóis negros descaíam-lhe pelas costas até às suas ondulantes e sedutoras ancas. Os seios firmes e hirtos. Os olhos eram negros e insondáveis como uma noite de Inverno.
Certamente seria ela a escolhida de que falara Cailleach. Pois para além de estar presa e à mercê do maldito, em seu redor estava também uma quantidade incomensurável de frutas e vagens. O pagamento que este reclamava pela permanência da sua gente naquele lugar.
Brigus desejou-a de imediato. Mas para que tivesse apenas a hipótese de concretizar o seu desejo, teria de convencer o seu povo a desafiar os lacaios do senhor das serpentes. E pior do que isso, enfrentá-lo.
- Quem és tu e o que fazes aqui, és louco? – inquiriu a jovem, nervosamente, assim que Brigus se aproximou.
- Não, não sou louco, mas posso ficar se tu quiseres – replicou, esbugalhando os olhos, parecendo de facto um louco.
- Engraçado – disse, sorrindo ligeiramente.
- Achas graça?
- Acho, mas não podes ficar aqui, vai-te embora antes que eles venham – declarou de novo agitada.
- Eles, quem?
- O meu povo, se pensam que podes pôr a minha segurança em risco irão atacar-te – revelou preocupada.
- És assim tão preciosa para eles? – perguntou, inocentemente.
- Digamos que sou uma oferenda e que se o meu destinatário não me receber matará todos.
- Pois digo-te que também pertenço ao teu povo e que não permitirei que te sacrifiquem por eles. Vou fazer com que lutem pela tua vida e pela terra que lhes pertence por direito.
- Hum. Mas, quem és tu afinal?
- Briugus, filho de Quangeius e irmão de Boelius e de Lubaurus. Devias ser ainda uma criança quando parti. E tu, como te chamas?
- Possivelmente, pois não me recordo de ti… – declarou, parecendo agora menos preocupada. A esperança de poder ser salva a inundar o seu âmago. - Chamo-me Trebaruna e fui resgatada pelo teu, nosso povo, aos lobos da montanha quando ainda era criança.
Brigus procurava na sua mente o que dizer quando um enorme grupo de gente, vindo do interior da caverna, se aproximou. Tinham um aspecto deplorável. O trabalho árduo e os anos de luta haviam-nos corroído, deixando-os macilentos e de olhar encovado. As vestes estavam andrajosas e no seu olhar lia-se desespero.
- Deixa-a em paz, estrangeiro, não foste para aqui chamado – vociferou o líder, determinado.
- Lubaurus, meu irmão, não me reconheces?
- Brigus, és mesmo tu, Brigus? – perguntou, emocionado. – Pensava que nunca mais te veria, meu irmão. Passaram tantos anos!
Escutou-se um clamor de espanto.
- Nós a pedir aos deuses que nos enviassem um herói capaz de nos salvar e eles mandam-nos um pau de virar tripas que segura um espeto – disparou uma mulher, irónica e mordazmente.
- Está calada mulher – vociferou Lubaurus. – A família é sempre bem vinda, por mais dificuldades que possamos estar a enfrentar.
- Aí, sim!... Então porque não esteve ele presente quando mais precisamos? – inquiriu, desafiando-o.
- Já te disse que te calasses, mulher – devolveu Lubaurus, preparando-se para lhe acertar com as costas da mão na face.
- Pára, tem calma irmão – disse Brigus, entrepondo-se entre os dois. – Eu respondo à pergunta – acrescentou, inabalável.
Lubaurus afrouxou o seu impulso e quedou-se para escutar o irmão.
- Eu estou onde os deuses querem que eu esteja e agora é aqui que eles querem que eu esteja – declarou, encarando a mulher do irmão.
- E porque vieste até nós? - questionou, intransigentemente.
- Para vos liderar contra o mal que enfrentam – enunciou, sereno.
Escutou-se um clamor, a esperança do povo renascera nas palavras do jovem caçador.
- Este mal que enfrentamos está para além do inimaginável – declarou Lubarurus, a encarnação do desalento. Acreditava que a única forma de resolver as suas dificuldades fosse corresponder a todas as exigências do maldito.
Pelo menos conseguira manter o povo vivo, o que Brigus considerava um grande feito, no entanto insuficiente. Aquelas terras haviam sido prometidas pelos deuses ao seu pai, pela sua memória tinham de lutar pela continuidade da sua presença nelas.
- Pelos deuses, a noite está a chegar e não tarda que eles venham buscar a rapariga, é prudente que nos recolhamos – disse Lubaurus, medroso.
- Querem continuar a passar fome e a entregar as vossas filhas ao maldito ou preferem repor a ordem, aestabilidade e a felicidade? – perguntou, a plenos pulmões.
Escutou-se um novo clamor. O povo estava entusiasmado e queria colocar termo aquela situação angustiante. Os caçadores batiam com as lanças na terra chã e com as espadas nos escudos. Trebaruna sorria, iria continuar a viver, casar e ter filhos. Talvez com Brigus, ele era o candidato ideal. Forte, destemido e sem receios.
- E o que pretendes tu fazer, meu estimado irmão? - perguntou Lubarus.
- Enfrentar os soldados do maldito – confessou.
- Mas isso é uma loucura!
- Não, não é! Quem de vós dos presentes nunca fez cair um caçador inimigo por terra?
Todos o tinham feito, nem que tivesse sido só por uma única vez.
- O que têm estes de diferente dos outros?
- Nada!
- Então enfrentemo-los esta noite.
- E quando o maldito vier ver porque não regressaram os seus lacaios com os seus prémios?
- Confias em mim ou não?
- Confio!
- Deixa que eu depois trato dele – declarou, determinado em seguir em frente com o plano que tinha em mente.
- Diz-me, então, meu irmão, quantos soldados costumam vir buscar as raparigas?
- Cerca de vinte.
- Óptimo! Somos três vezes mais, o que nos vai facilitar a tarefa. E por onde surgem?
- Ao longo do vale.
- Hum. Estou a ver! Coloquem armadilhas ao longo da sua extensão. Pois quando chegarem até nós, serão ainda menos.
- Assim faremos!
- Agora liberta Trebaruna e leva-a mais as outras mulheres e as crianças para a segurança da caverna. Mas, deixa ficar a comida e a estaca tal e qual como estão, irei precisar delas para mais tarde.
- E onde nos posicionaremos?
- Aguardamo-los nas vertentes. E atacamos quando se aproximarem da caverna.
- Pois bem!
A noite surgiu negra e gélida, quebrada por gritos de terror e dor. As armadilhas haviam resultado!
Nunca o clã do javali havia dado luta aos guerreiros serpente, pelo que os poucos que alcançaram a caverna estavam receosos e amedrontados. Quando os caçadores caíram sobre si, a sua resistência foi mínima pelo que os levaram de vencida facilmente. Felizmente ninguém morrera, apenas um jovem caçador, ansioso e descuidado havia ficado ferido.
Já a noite ia alta e os sórdidos e ofídios restos mortais do inimigo haviam sido consumidos completamente pelo fogo, quando Lubaurus abordou um taciturno e meditativo Brigus.
- Não tardará que o maldito surja para verificar o que aconteceu aqui – disse Lubaurus, agora mais confiante, mas ainda assim receoso pelo desfecho da sua ousadia.
- Deixa que venha – replicou Brigus, enquanto limpava, das suas vestes, o sangue do inimigo.
- Mas…
- Leva-os a todos para a caverna, deixa-os em segurança e regressa sozinho. Traz-me crina de cavalo negra e um vestido de mulher.
A crina era utilizada pelo clã para manufacturar corda.
- Que raio de ideia é a tua?
- Traz-me o que te pedi, que logo verás!
Lubaurus desapareceu no interior da caverna e instantes depois regressou com aquilo que o jovem irmão lhe pedira.
- Temo por ti – confessou o irmão mais velho.
- Não temas! Os anos em que estive ausente, a combater as mais vis das criaturas, prepararam-me para este momento. Confia no sangue do teu sangue.
- Confiarei – redarguiu, abraçando o irmão comovidamente. – Posso fazer mais alguma coisa por ti?
- Podes! Regressa para a caverna e aguarda, mantendo os outros tranquilos.
- Que assim seja!
Brigus vestiu o vestido que solicitara ao irmão e com a crina de cavalo simulou uma farta cabeleira de mulher. Ocultou a lança que Cailleach lhe cedera, perto da estaca, e encostou-se a esta tal como se tivesse amarrado à mesma. O embuste estava preparado, restava-lhe agora aguardar pela chegada da criatura ofídia.
A lua, um obre cheio e prateado, iluminava o local. Brigus sabia bem o que fazer, no entanto disciplinava a mente para que jamais em alguma circunstância viesse a olhar directamente nos olhos da criatura. Pois se ficasse transformado em pedra deitaria tudo a perder. Ao longe escutava-se o lamento do lobo e o choro do corvo.
De súbito Brigus escutou movimento, não por onde esperava ver a hedionda criatura surgir, mas sim proveniente do lado oposto, no sentido da caverna. Era Trebaruna, quem vinha na sua direcção.
- O que fazes aqui, estás louca?
Não, não estou louca, mas posso ficar se tu quiseres?
- Onde já ouvi, eu, essas palavras?
Ambos riram.
- Vim apenas agradecer-te por me teres salvo a vida – declarou, alegre e sorridentemente.
- Pronto, está bem, já agradeceste! Agora vai para junto dos outros e procura mantê-los calmos.
- Irei, mas não sem antes te mostrar o que te espera caso venças a criatura – declarou, beijando-o em seguida nos lábios.
- Vencerei – disse o jovem guerreiro, agora ainda mais determinado em levar o rei das serpentes a cair por terra, pela perspectiva de sentir novamente aqueles lábios quentes e carnudos a tocarem os seus.
Trebaruna acabou por ir-se juntar ao restante clã, na aparente segurança da caverna e ele, o maldito, o hediondo e descomunal, o rei das serpentes emergiu por entre a escuridão.
Caburoniq não se havia poupado na descrição que fizera ao jovem caçador, exagerando largamente, ainda assim a criatura era detentora de um tamanho descomunal. A sua hedionda cabeça estava já bem perto de Brigus enquanto a cauda ainda não se vislumbrava.
Os seus olhos, dois enormes orbes vermelhos e luzidios, brilhavam na noite, procurando atrair o olhar dos mais incautos. Das suas descomunais mandíbulas, tais lâminas lancinantes, escorria uma seiva pestilenta e pútrida.  Do seu corpo couraçado e escamoso emanava um odor repugnante e nefasto. E com a sua língua, bifurcada e porosa, sondava a área em busca dos seus lacaios desaparecidos.
Não detectando quaisquer sinais dos seus comparsas, serpenteando-se vorazmente, depressa alcançou a pretensa virgem. Por instantes engoliu o embuste que o jovem caçador lhe havia preparado, permanecendo quedo, mas depressa os seus elevados instintos detectaram a fraude e enfurecido, soltando um agonizante e ensurdecedor silvo ergueu-se altivo, preparando-se para mergulhar sobre o impostor que o usara desafiar, a fim de o engolir vivo.
Brigus, caçador e guerreiro experimentado, embora nunca tendo encarado a nefasta criatura olhos nos olhos, desde que esta entrara na clareira, nunca desviou o olhar da mesma. Por pouco não descobria o seu ponto fraco, mas quando o maldito se ergueu nas alturas, os seus olhos de lince apressaram-se a procurá-lo, encontrando-o. A sua dura e espessa couraça de escamas cobria-lhe todo o corpo no entanto a garganta encontrava-se a descoberto. Teria de agir rápido.
O monstro escancarou a sua bocarra descomunal, libertando um odor fétido que por instantes revolveu as entranhas do jovem caçador. Tão célere, tal como se erguera, assim se deixou cair sobre a sua pretensa vitima. Porem, quando o fez era já tarde para si. Brigus desembaraçara-se com facilidade das amarras que o seguravam ao poste. Em seguida, pegou na lança que havia ocultado entre as frutas e as vagens e postando-se ajoelhado ergueu-a apontando a ponta desta ao único ponto a descoberto da besta.
 A velocidade com que o rei das serpentes se deixou cair sobre Brigus para o abocanhar era tal que foi o suficiente para que a lança se enterrasse por completo na sua garganta. Um grito de dor ecoou atroador por toda região, e o ofídio e pesado corpo do maldito tombou com estrondo sobre a terra chã, contorcendo-se em agonizantes espasmos. Os pássaros sobressaltados abandonaram as copas das árvores e o lamento do lobo emanou lúgubre.
- Estamos livres, podem abandonar a caverna, os olhos do maldito fecharam-se para sempre – bradou o jovem caçador, tomado pelo o entusiasmo da proeza que havia acabado de conseguir realizar.
Aos poucos e poucos o restante clã foi emergindo da caverna. A raiva que sentiam pela tirânica criatura era tanta que se apressaram na sua direcção, acometendo da melhor maneira que podiam sobre o corpo que agora jazia praticamente inerte, bloqueando quase por completo a embocadura do abrigo. Se havia alguma réstia de vida na criatura esta depressa se esvaeceu.
De súbito, como por artes mágicas, o nauseabundo cadáver transformou-se em pó que rapidamente se dissipou com o vento. E um audível clamor de deslumbramento e alegria escutou-se. Trebaruna correu a beijar o herói e o povo carregou-o em ombros.
As gentes que estavam petrificadas regressaram à sua forma natural. Boélius regressou das montanhas proibidas, nas quais estivera também ele petrificado durante anos. E Caburoniq pôde contar novamente histórias às crianças.
Brigus dominou a serpente que oprimia o clã do qual, com todo o mérito, se tornou chefe. Desposou a jovial e enigmática Trebaruna, a qual cuidou maternalmente dos demais. E ainda hoje, milénios depois de ambos terem sido idolatrados como deuses, pelas gerações vindouras, os seus nomes se escutam em Finisterra, onde a sua presença divina é também ainda sentida.

Ricardo Alves




A irmandade de Bandua


O sacerdote ergueu o cajado e o troar retumbante que, por momentos, enchera os gélidos ares da serrania de alegria e magia, tal como havia começado, cessou abruptamente. Naquele ano haviam sido muitos os jovens da Lusitânia e da Galaecia que haviam comparecido à chamada dos tambores. As terras ibéricas estavam infestadas por romanos. Bandua ressurgia agora das trevas para fazer a guerra e semear o caos entre o inimigo.
Naquele local, onde outrora os antigos já haviam invocado os deuses sem nome, os sacerdotes da irmandade iriam agora, entre as centenas de candidatos que se haviam apresentado, apurar os trinta melhores guerreiros, a fim de os enviar como reforço aos caudilhos da confederação de tribos que combatia o inimigo a sul.
Entre os jovens candidatos a expectativa era muita, esta era a derradeira oportunidade de virem a ser alguém na vida. Na sua grande maioria eram provenientes de famílias de guerreiros, porem como só o primogénito herdava as armas e as posses do pai, a estes segundos filhos só restava esperar que fossem escolhidos pelos sábios para aprender as suas artes e conhecer os segredos dos deuses. Caso tal não se viesse a suceder e nenhum artesão se prestasse a revelar-lhes os seus saberes o único caminho que tinham pela frente era o do bandoleirismo e a árdua vida nas montanhas. 
Mellia, a mãe de Attanius, que fora quem o acompanhara na rumaria às montanhas, ao entregá-lo aos insondáveis guerreiros de Bandua, despediu-se deste com um beijo na testa. Este ficou a vê-la partir, no entanto antes que desaparecesse na linha do horizonte gritou-lhe: - Mãe!!! 
- Este não vai lá! – Notou um dos guerreiros.
- É muito novo ainda, dificilmente será um dos escolhidos! – Concordou o outro.
Procurando disfarçar o seu olhar lacrimejante, quando Mellia se voltou para o lugar onde entregara o filho já este, depois de se libertar aparatosamente dos guerreiros, corria para os seus braços. 
- Não me abandones – disse subvertido pela brumosa cortina negra que persistia em encobrir o seu futuro desde que nascera há doze primaveras.  
- Eu não te estou a abandonar, volto daqui a dias para saber se foste aceite ou se te levo de volta. Agora vai e dá o teu melhor, o teu futuro começa aqui!
Na ausência do marido que guerreava no sul, Mellia depois do filho ter resistido às largas noites com sucesso – os rituais de passagem à idade adulta a que os jovens das tribos da grande ibéria eram sujeitos –, achara por bem que ele deveria responder à chamada do tambor. Pertenciam ao clã dos Oilienaici, o qual se dedicava à criação de ovelhas. Por tal, não podendo Attanius vir a erguer as armas do pai, uma vez que o sacerdote Oilienaici já tinha três discípulos e eram já imensos os pastores guerreiros que olhavam pelo gado do clã. A mulher, desesperada por assegurar um futuro àquele seu filho decidira entregá-lo a Bandua.
Enquanto aguardavam pelo discurso de recepção do sacerdote, os jovens candidatos numa autêntica algazarra, aproveitaram para exibir as suas aptidões uns aos outros, criando e reforçando assim laços de amizade. Uns eram muito bons com a lança, outros com a funda e os demais nas corridas e nas lutas corpo a corpo. Embora conseguisse fazer tudo aquilo relativamente bem e até mesmo conseguisse desafiar os campeões, Attanius não era “muito bom” em nada, pelo que se decidiu apartar do ruidoso bando, aguardando pelo que se seguiria sentado num penedo orlado por musgo e líquenes.
- Eiha! – Disse alguém, roubando Attanius aos seus pensamentos.
- Eiha!
- Porque não te juntas àquele bando de idiotas? – Perguntou-lhe o rapaz que o abordara. Alto e espadaúdo de cara afunilada e cabeça raspada, apenas com tufo de cabelo no cocuruto. 
- Talvez por não ser um idiota!
- Sou Adronus dos Caielobricoi – apresentou-se o rapaz, estendendo-lhe a mão.
- E eu Attanius dos Oilienaici, – respondeu, apertando-lhe a mão.
- O meu pai enviou-vos vinte falcatas e algumas espadas, o ano passado, em troca de cinquenta ovelhas. A vossa carne é muito boa!
- Obrigado, mas eu nunca terei o gosto de a criar!
- Nem eu o gosto de forjar espadas, são precisos anos para aprender!
- Achas que teremos hipóteses contra aqueles rudes de entrar na irmandade?
- Claro que temos, podem vencer as provas todas, mas se ao fim de três dias não regressarem dos bosques com um precioso troféu, não entram.
- Como sabes isso?
- Tenho cá um irmão.
Attanius sorriu.
- Vês aquele ali, de sago castanho e de fita negra na cabeça?
- Sim vejo, o que tem?
- É do meu clã e há anos que me persegue.
- Porquê?
- Como é forte e bom lutador vive rodeado de bajuladores e não sei se é dos seus olhos ou do seu cheiro, mas também vive rodeado de raparigas. Todos o desprezam, no entanto caiem-lhe aos pés apenas para conseguirem os seus favores. Como eu não lhe dou importância alguma, diz que o invejo e sempre que pode faz-me a vida negra.
- Já reparaste que é bem mais velho do que nós?
- Sim, aí umas duas ou três primaveras! Porquê?
- Se tivesse de facto o valor que os outros idiotas pensam que tem, há muito que já fazia parte da irmandade.
Attanius voltou a sorrir, Adronus com a sua jovialidade havia conseguido animá-lo.
Burralus, o tratante de quem falavam, acabara de esmurrar um desgraçado qualquer, deixando-o em muito mau estado. Caso os guerreiros da irmandade não interviessem o pior podia mesmo ter acontecido. Perante o ar transtornado dos irmãos, os seus adoradores davam vivas.
- Vês, é disto que falávamos!
Adronus torceu os lábios.
Notando que o observavam, Burralus apontou na direcção de Attainus e passou o dedo indicador pela faringe, como que a ameaçá-lo de morte. Surpreso, este engoliu em seco. 
Notando o ar apreensivo do companheiro, depois de levar a mão às partes baixas para afastar o azar. Adronus colocou-lhe uma mão nos ombros, procurando tranquilizá-lo ao mesmo tempo que firmava estar do seu lado.
O intimidador rapaz, esboçando um esgar de desprezo voltou-se para o lado e cuspiu para a terra chã.
Estava lançado o desafio dentro do desafio.


Um corno suou estridente e Cilius, o sacerdote que havia sido escolhido para receber os jovens candidatos, entrou na clareira. Uma figura negra, nebulosa e insondável. Um manto negro com capuz ocultava-o por completo, deixando apenas antever o rosto e as mãos, por sua vez cobertos na totalidade por pez. Apenas dois sinistros círculos brancos em redor dos olhos atenuavam o negrume. Dizem que era velho, muito velho, já no começo dos tempos. A reencarnação do próprio Bandua. 
Silenciosamente, com um indicador longo e nodoso, o sacerdote apontou Burralus e três dos seus parceiros, chamando-os a si. Um sorriso arrogante e triunfante enchia-lhes o rosto, porem este esmoreceu quando a insondável figura negra lhes disse que tinham fracassado o primeiro teste. Enquanto aguardavam pelo começo das provas, os caracteres dos candidatos haviam estado a ser avaliados, pelo que logo à partida estavam fora da irmandade.
- Isto não fica assim, criatura medonha!
Apoiado no cajado, Cilius fitou Burralus de alto abaixo sem nada dizer.
- Eu e os meus companheiros iremos dar caça aos vossos candidatos e no final é a nós quem ireis aceitar.
Cillius cortou velozmente o ar com o cajado e com a sua voz profunda disse; - Amaldiçoo-te, a ti e aos teus companheiros e às vossas famílias por três gerações. Que os maus ventos vos levem para as profundezas abismais das montanhas e os vossos ossos enegreçam ao sol e ao vento destas terras sem quaisquer honrarias fúnebres, tal a vossa insolência para comigo e acima de tudo para com a irmandade. 
Com estas palavras, tomados pelo pânico, Burralus e os seus companheiros evolaram-se nos bosques.
Volteando subitamente o cajado na direcção de Attanius, Adronus e dos restantes rapazes, sem deixar margem para quaisquer dúvidas, Cellius disse; - Se durante a vossa prestação de provas, algum destes miseráveis se atravessar no vosso caminho não hesitem em fazer o que tem de ser feito. E agora que a noite já vai alta desejo-vos um bom descanso e que amanhã pelos primeiros alvores voltem a este local para receberem as armas e darem inicio às provas.
O silêncio abismal daquela noite, negra e sem lua, apenas era quebrado aqui e ali pelos urros das bestas nocturnas. Pouco faltava, agora, para os primeiros alvores e Attanius ainda não havia conseguido pregar olho, voltando-se constantemente no seu leito de folhas e líquenes.    
- Porque não sossegas, amigo? – Perguntou Adronus, que entretanto despertara com o inquietante roçagar das folhas. 
- Não vou conseguir passar as provas.
- Porquê, o que te preocupa?
- Burralus.
- Burralus!!! Mas esse traste e os seus lacaios já estão fora das provas.
- Pior ainda! Estou certo que nos vão dar caça.
- Porque o dizes?
- Fez-me a vida negra nas largas noites!
- Eles que venham. Não estarás sozinho!
- Estarei, não te quero estragar as provas.
- Bandua preza o companheirismo entre os seus, ele irá proteger-nos. Assim espero que seja essa a sua vontade.
Uma faixa de luz cinzenta emergiu a Este e de novo as trompas ecoaram. Os candidatos acorreram à presença de Cillius e as armas que iriam levar consigo durante as provas foram entregues. Um punhal. Iriam ter que sobreviver nos bosques da Lusitânia, onde centenas de ossos de crianças incautas jaziam na poeira e enegreciam ao sol, munidos apenas de um punhal.
Junto do local escolhido para os jovens entrarem nos bosques estava um grupo de sacerdotes, tão misteriosos como o mestre Cilius, que aspergiram os jovens à sua passagem com o sangue de um cabrito sacrificado durante as trevas da noite. Palavras indecifráveis foram proferidas e um a um os jovens desapareceram por entre a densa vegetação dos bosques. Curiosamente os únicos que permaneceram juntos, tendo os outros seguido cada um o seu caminho, foram Attanius e Adronus. 
Cilius sorriu.
O chilrear dos pássaros que anunciava o novo dia era ensurdecedor. O que os deixou apreensivos, pois se algum inimigo se aproximasse dificilmente o iriam ouvir atempadamente. O céu estava coberto de nuvens brancas e, raso à terra chã, o vento soprava forte e frio. Adronus, embora mostrasse uma calma fora do comum, ansiava por encontrar algo, pois não havia árvore ou arbusto que não examinasse cautelosamente. 
- O que tanto procuras, amigo?
Adronus sorriu.
- Precisamos de construir uma arma possante para conseguir os nossos troféus ou pensas que é com o punhal que o vamos conseguir?
- Madeira! É isso que procuras?
- Nem mais!
Embora tímido, o sol atingira o zénite e os pássaros agora bem mais silenciosos descansavam à sombra das ramagens, deixando os demais ruídos do bosque alcançarem os seus ouvidos com mais facilidade. Pelo que, ao escutarem as suas ruidosas águas, foram ao encontro de um ribeiro. Depois de saciarem a sua sede, Adronus procurou um rochedo onde se sentou examinando os vários ramos que haviam colhido durante a manhã.
- Procura algo que se coma – disse para um atónito Attanius. 
- Não precisa de ajuda com isso?
- Não! Procura comida enquanto trato disto.
- Vou então ver o que encontro!
Quando Attanius  regressou ao local onde deixara Adronus, para se embrenhar no matagal, já este, servindo-se do punhal cedido pela irmandade havia talhado vários dardos que estavam cravados na terra, dormindo a seu lado.
- Eiha! – Gritou Adronus, a fim de verificar se o companheiro era sempre assim tão tranquilo, mesmo perante uma ameaça.
Sem que esperasse, em menos de um piscar de olhos, Adronus estava à sua frente segurando um dardo, cuja ponta lhe roçava o peito.
- Calma, calma, sou só eu!
- Não tornes a assustar-me, a brincadeira pode-te sair cara.
- Afinal também reages perante o perigo.
- Obviamente, mas só quando este é real! Ao contrário de ti que não paras de olhar sobre os ombros à espera de encontrar Burralus.
O rosto de Attanius  ensombrou-se.
- Estou certo de que aparecerá para nos atrapalhar a prova, garanto-te.
- E depois, quando aparecer enfrentamo-lo!
- Como se tudo fosse assim tão simples.
- Ou ganhas ou perdes!
- Trouxe amoras silvestres – disse, procurando mudar de assunto.
Depois de se empanturrarem com os frutos, agora munidos também com os dardos, permaneceram, ocultando-se na vegetação junto ao curso de água, aguardando o momento certo para lhes darem uso. Pois todos os animais que podem potenciar bons troféus, mais cedo ou mais tarde têm de beber. Porem não foi um animal que escutaram, mas sim alguém que chorava. Um choro envergonhado e abafado por um desespero frenético. Agachado junto ao frondoso ramo de um carrasco, estava um rapaz que segurando os joelhos balançava de um lado par o outro.
Sobressaltado pelos passos dos dois companheiros, o rapaz levantou-se e encarou-os desesperado. Era o mesmo que havia sido violentado por Burralus no dia anterior, sendo ainda visível no rosto o hematoma que este lhe provocara. A sua túnica estava esfarrapada, o seu corpo escoriado, sujo e ensanguentado. Do seu punhal, nem sinal.
- Do que te escondes? – perguntou Attanius . 
- De Burralus e dos seus companheiros, são perto de dez e estão montados! Deram-me caça e só escapei por uma unha negra. Caí por uma ladeira coberta de arbustos espinhosos onde perdi o punhal e me arranhei todo. Depois corri para aqui.
- Eu sabia que o bastardo viria!
- Calma Attanius, agora somos três, o que equilibra os números!
- Não me vão deixar aqui?
- Claro que não, não escutaste o meu companheiro?
O rapaz sorriu, agora aliviado por não ter mais que passar pelas suas provações sozinho.
- Toma – disse Adronus – atirando um dardo para o recém-chegado apanhar. – Defende-te com isto. Agora vamos para as fragas, não tarda apanham-nos o rasto, temos de nos preparar para os receber.
- Obrigado, amigos! A propósito, sou Licus dos Petranioi.


Confirmando as suspeitas de Adronus, depressa Burralus lhes seguiu o rasto. No entanto para chegar até si e aos seus companheiros, o traste e os seus seguidores teriam agora de percorrer uma estreita vereda por entre fragas escabrosas, onde fazia já tempo era esperado. Não conseguindo avançar lado a lado, Burralus e os seus seguiam em fila, devagar e atentos. Escurecia rapidamente e os perigos da noite avizinhavam-se.
Lançando uma chuva de pedras sobre a vanguarda do grupo, a qual lhe precipitou a fuga, Attanius e os companheiros atacaram a retaguarda, degolando dois dos seus oponentes e desaparecendo tal como haviam surgido, três sombras na escuridão. No rosto de Burralus, o qual a luminosidade da lua deixava vislumbrar, via-se um vincado ódio glacial. Afinal os miúdos, que julgava caçar, davam luta. Receando perder mais elementos ordenou ao grupo que volta-se a trás para montar acampamento. Ao ver o grupo descer a vereda, Adronus não resistiu e pegando no dardo que julgava ser o mais maleável, arremessou-o derrubando mais um. Attanius exultava, afinal Burralus e os seus comparsas eram, tal como ele e os seus companheiros, meros seres humanos. E neste momento aterrorizados.
Sabendo que Burralus não iria cometer o mesmo erro duas vezes, atravessaram as fragas descendo o outeiro pelo lado oposto, ao qual este se encontrava. Porem, ao fazê-lo deram por si num terreno desabrigado, rochoso e árido, onde a erva era fortemente violentada por um vento frio que lhes enregelava os ossos.
- E agora, – perguntou Licus – o que fazemos?
- Temos de atravessar o ermo até aqueles montes além – respondeu Adronus, o mais experiente neste tipo de andanças.
- Mesmo que o façamos durante a noite, Burralus amanhã apanha-nos antes de lá chegarmos – disse o ponderado Attanius.
- Estou certo que, temendo outro ataque, não voltará a entrar montado pelas fragas adentro e quando perceber que atravessamos o ermo voltará atrás para ir buscar os cavalos, o que nos dará tempo suficiente para ali chegarmos.
- Corramos então!
Quando avistaram a silhueta dos cavalos contra o sol matinal, encontravam-se já ao abrigo de um maciço de árvores. 
- Com mil trovões! – clamou Attanius quando viu um dos outros jovens candidatos à irmandade passar ao largo, carregando o seu troféu, uma raposa.  
- Eu conheço-o, é do meu clã – disse Licus!
- Chama-o, então. Se Burralus se cruza com ele temo o pior.
- Pellius, eiha, Pellius, aqui!
Desconfiado, Pellius olhou em redor, empunhado o seu punhal.
- Quem são e o que querem?
- Não tarda que Burralus e os seus facínoras alcancem este lugar, vem abrigar-te connosco.
O troar dos cavalos do bando de Burralus estava cada vez mais audível.
- Não sejam tolos, não passa de um rapazola! Tenho mais do que fazer do que perder tempo com tal figura.
- Corre depressa, para aqui – gritou Attanius , o qual ficou perplexo ao não avistar Adronus. – Onde raios se meteu Adronus?
- Não sei, ainda agora aqui estava!
- E Burralus onde está, deixei de ver e ouvir os cavalos!
- Olha, vêm ali!
Um grito de morte ecoou pelos ares, deixando os companheiros apreensivos. Arfando, com um dardo nas costas e o corpo descaído sobre os joelhos, Pellius deixava escorrer um fio de sangue pela boca. Não tardaria que caísse morto. Burralus alcançara-os por fim. Embora, na noite anterior, tivessem aniquilado alguns dos seus oponentes, o grupo adversário ainda assim ultrapassava o seu em duas unidades, para alem de estar bem armado e protegido. Pelo que seria deveras difícil levá-los de vencida apenas com dois punhais e alguns dardos toscos.
Todavia, Adronus equilibrara as forças, ao surgir sorrateiramente perante o homem que Burralus havia deixado de guarda aos cavalos. Para este a morte chegara rápida e silenciosamente. E, munindo-se das polainas, da caetra e da falcata deste, regressou para junto dos companheiros com as montadas do inimigo.
De caçador Burralus passara a presa, vendo-se rodeado pelos seus inimigos, que agora montados, nos seus próprios cavalos, o espicaçavam a ele e aos seus três companheiros. Dos quais um, desesperado, tentou a fuga. Não deixando escapar a oportunidade, Licus, arremeçou-lhe um dos dardos que carregava, atirando-o por terra. 
Aproveitando a distracção, um dos outros lançou as mãos à perna esquerda de Attanius que desequilibrando-se caiu desamparado. Em pânico a montada fugiu, deixando-o apeado. Burralus ao vê-lo caído depressa investiu, mas temendo o pior já Adronus havia atirado a caetra a este, que servindo-se desta conseguiu aparar o ataque.
Saltando da montada como um louco, Adronus caiu em cima de um dos dois restantes, esfaqueando-o consecutivamente com o seu punhal. Salpicando todos de sangue. Attanius, aproveitando a distracção jogou o seu dardo às pernas do lacaio sobrevivente de Burralus e derrubou-o, para o regressado Licus terminar o serviço empalando-o com o dardo que restava. Aterrado por ver a morte cada vez mais de perto, Burralus desatou a correr, mostrando a sua verdadeira natureza ao fugir. A natureza de um cobarde.
Banqueteando-se com as provisões de Burralus e dos outros acenderam uma fogueira, agora que não eram perseguidos por ninguém, decidindo pernoitar por ali mesmo.
- Temos apenas mais um dia para conseguir os nossos troféus e regressar – disse Attanius.
- Com as armas de Burralus e dos outros, agora tudo estaria mais fácil, não fosse o tempo estar-se a escoar rapidamente – afirmou Licus.
Perante o que os companheiros haviam dito, Adronus deu uma valente gargalhada.
- Basta que façamos o caminho de volta por onde viemos, os nossos troféus estão lá!
Percebendo o que Adronus pretendia dizer, Licus ululou rejubilante, pois não haveria troféu mais precioso do que aquele que iriam apresentar. Adronus ululou também e Attanius, ainda assim pensando se tal seria uma boa ideia, começou a cantar partilhando da alegria dos companheiros.
- Ainda me custa a acreditar como conseguimos escapar a esta provação – disse Licus.
- Foi a união e a luta por um propósito comum que nos levou consegui-lo – respondeu Attanius. – Espero que os outros membros da irmandade sejam assim tão unidos quanto nós.
- Acredita que são – declarou Adronus.
- Quem nos viu e quem nos vê – disse Licus. – No começo disto tudo éramos apenas três rapazes assustados e eu até chorar, chorei.
- Se não tivesses chorado, nós não tínhamos dado por ti e ainda lá estavas!
Licus e Adronus riram.
- Foi Bandua quem lutou por nós!
No dia seguinte, tal como planeado fizeram o caminho inverso, agora mais rapidamente, devido ao facto de estarem montados. E, já com os seus preciosos troféus partiram ao encontro de Cilius e dos outros irmãos. Avistavam já o lugar, quando um grito horripilante, seguido pelo troar de um cavalo a galope cortou o silêncio da manhã. 
Pegando Licus pela gola da túnica, Burralus que surgira das trevas para reclamar a sua vingança, arremessou o pobre coitado contra um consistente tronco de árvore, deixando-o inconsciente. Dando meia volta, colocando-se de frente para os companheiros lançou uma trágula certeira que arrancou parte da orelha direita de Adronus, arremessando-o para a terra chã, onde permaneceu, açoitado por uma dor lancinante. Restava apenas Attanius para lhe fazer frente. 
Attanius desmontou, seguido por Burralus e as falcatas entrechocaram-se. Recuando uns passos, estudaram-se mutuamente. Destemido, Attanius avançou em frente erguendo a sua caetra, Burralus desviou-se ligeiro. Contudo, prevendo o movimento, Attanius golpeou baixo a fim de lhe atingir as pernas, mas Burralus mais uma vez esquivou-se habilmente, atacando de seguida com a caetra levantada e a falcata para baixo.
Os escudos chocaram com estrondo e Attanius aparou o golpe baixo. Empurraram-se mutuamente, tentando subjugar o outro. Attanius percebeu que Burralus era rápido e hábil e com isso recuou. Sem ter tempo que fosse para respirar,  Attanius viu Burralus a atacá-lo arrebatadamente e, embora, em dificuldade aparente acabou por suster com a sua caetra uma sucessão de golpes impulsivos.
Burralus obrigou Attainus a recuar novamente, desviando a direcção de um golpe a meio, procurou atingi-lo de novo por baixo. Desta vez conseguiu e Attanius vacilou, não ganhando para o susto, pois apenas havia sido atingido de raspão numa das polainas que surripiara a um dos cadáveres dos companheiros do seu oponente. Contudo descuidou a defesa e Burralus lançou a caetra sobre a sua, tentando derrubá-lo. De súbito movido pela raiva que sentia pelo biltre soltou toda a tensão que acumulara ao longo dos anos e gritou a bom gritar, e parecendo ter ganho nova vida empurrou-o violentamente com o escudo, acabando por libertar-se deste.
Burralus sabia agora que se quisesse levar Attanius de vencida que se tinha de aplicar ao máximo. Berrou e voltou a carregar sobre ele com todas as suas forças. E, este aparando as suas investidas ora com o escudo ora com a falcata foi recuando até que quando se preparava para contra atacar, com tudo o que tinha, tropeçou num sulco de terra e caiu desamparado. Burralus voltou a lâmina da sua falcata para baixo e deixou-a cair sobre o peito desprotegido de Attanius.
Burralus arfou e agarrado à trágula, a mesma que arremessara a Adronus, caiu sobre Attanius , que com um pontapé o atirou por terra, cada vez mais longe desta vida, tentando impedir que as suas entranhas lhe saíssem para fora do ventre. 
Quando Attanius se desequilibrou, caíra junto da trágula que jazia abandonada por terra. Vendo que Burralus vinha para cima de si, sem que este esperasse, ergueu-a fazendo com que este se empalasse a si próprio.
Chegados ao lugar onde a irmandade os aguardava, apresentaram os seus troféus a Cilius. Nem mais, nem menos que as cabeças daqueles que lhes haviam dado caça, tendo passado a prova com distinção. 
Como parte integrante da irmandade, os três companheiros e os demais escolhidos que também haviam regressado com troféus receberam dos sacerdotes, uma túnica, umas polainas e uma couraça, todas elas negras. Sobre a ultima uma corda com nós, simbolizando a sua amarração ao deus.
- Pois bem meus jovens irmãos chegou a hora de partirem e de deixarem para trás a vida que sempre conheceram, Bandua chama por vós. – Declarou o ancião. – Caturis conduzirá-vos-á ao vosso destino.
Ao ver o irmão, Adronus sorriu, abraçando-o.
- Onde nos levas irmão?
- Viriathus precisa de nós!

Ricardo Alves