Em plena crise, o pensamento inquieta-se e interroga-se; ele pesquisa as causas mais profundas do mal que atinge a nossa vida social, politica, económica e moral.
As correntes de ideias, de sentimentos e interesses chocam brutalmente, e deste choque resulta um estado de perturbação, de confusão e de desordem que paralisa toda a iniciativa e se traduz na incapacidade de encontrarmos soluções para os nossos males.
Portugal perdeu a consciência de si mesmo, da sua origem, do seu génio e do seu papel, de herói intrépido, no mundo. Chegou a hora do despertar, do renascimento, de eliminar a triste herança que os povos do velho mundo nos deixaram, as bafientas formas de opressão monárquicas e teocráticas, a centralização burocrática e administrativa latina, com as habilidades, os subterfúgios da sua politica e dos seus vícios, toda esta corrupção que nos tolda a alma e a mente.
Para reencontrar a unidade moral, a nossa própria consciência, o sentido profundo do nosso papel e do nosso destino, isto é, tudo o que torna uma nação forte, bastaria a nós portugueses eliminar as falsas teorias e os sofismas que nos obscurecem o caminho de ascensão à luz, voltando à nossa própria natureza. Às nossas origens étnicas, ao nosso génio primitivo, numa palavra, à rica e ancestral tradição lusitana e/ou celtibera, agora enriquecida pelo trabalho e o progresso dos séculos.
Um país, uma nação, um povo sem conhecimento, saliência do seu passado histórico, origem e cultura, é como uma árvore sem raízes. Estéril e incapaz de dar frutos.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Fátima segundo Pessoa


A arca pessoana continua a surpreender. Entre versos e fragmentos, os especialistas têm encontrado uma míriade de escritos que revelam um poeta atento à sua época. Muito desses textos eram projecto de livros e de artigos que, no entanto, ficaram por publicar.

O volume "Fernando Pessoa: O Guardador de Papéis" organizado por Jerónimo Pizarro e editado pela Texto Editora, nas livrarias a 24 de Junho, revela algumas dessas facetas desconhecidas, reunindo as intervenções do colóquio homónimo organizado pela Casa Fernando Pessoa. Entre as mais surpreendentes está a posição do poeta em relação às aparições de Fátima. O historiador José Barreto recolheu vários textos, alguns deles inéditos, como este que aqui antecipamos, pensado para o Diário de Lisboa. É um olhar irónico sobre uma realidade que já na altura arrastava multidões e, nas palavras de Fernando Pessoa, vários negócios.

Fátima é o nome de uma taberna de Lisboa onde às vezes... eu bebia aguardente. Um momento... Não é nada disso... fui levado pela emoção mais que pelo pensamento, e é com o pensamento que desejo escrever. Fátima é o nome de um lugar da província, não sei onde ao certo, perto de um outro lugar do qual tenho a mesma ignorância geográfica mas que se chama Cova de qualquer santa. Nesse lugar -- em um ou no outro-- ou perto de qualquer deles, ou de ambos, viram um dia umas crianças aparecer Nossa Senhora, o que é, como toda a gente sabe, um dos privilégios infinitos a que se não parte a corda.

(...) e assim como passou a haver "liberdades" em vez de "liberdade", assim também passou a haver crenças em vez de crença, fés em vez de fé, e vários outros plurais ainda mais singulares.

(...) Seja como for, o facto é que há em Portugal um lugar que pode concorrer e vantajosamente com Lourdes. Há curas maravilhosas, a preços muito em conta; há peregrinações que dispensam o combóio (criação do estúpido etc!).

(...) O negócio da religião a retalho, no que diz respeito à Loja de Fátima, tem tomado grande incremento, com manifesto extase místico da parte dos hoteis, estalagens e outro comércio desses jeitos--o que, aliás,está plenamente de acordo com o Evangelho, cuidando-se de bens materiais,"Buscai-vos o Reino de Deus e todas essas coisas vos serão acrescentadas".

Fernando Pessoa Jornal de Letras nº 1010 de 17-30 de Junho de 2009


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