Em plena crise, o pensamento inquieta-se e interroga-se; ele pesquisa as causas mais profundas do mal que atinge a nossa vida social, politica, económica e moral.
As correntes de ideias, de sentimentos e interesses chocam brutalmente, e deste choque resulta um estado de perturbação, de confusão e de desordem que paralisa toda a iniciativa e se traduz na incapacidade de encontrarmos soluções para os nossos males.
Portugal perdeu a consciência de si mesmo, da sua origem, do seu génio e do seu papel, de herói intrépido, no mundo. Chegou a hora do despertar, do renascimento, de eliminar a triste herança que os povos do velho mundo nos deixaram, as bafientas formas de opressão monárquicas e teocráticas, a centralização burocrática e administrativa latina, com as habilidades, os subterfúgios da sua politica e dos seus vícios, toda esta corrupção que nos tolda a alma e a mente.
Para reencontrar a unidade moral, a nossa própria consciência, o sentido profundo do nosso papel e do nosso destino, isto é, tudo o que torna uma nação forte, bastaria a nós portugueses eliminar as falsas teorias e os sofismas que nos obscurecem o caminho de ascensão à luz, voltando à nossa própria natureza. Às nossas origens étnicas, ao nosso génio primitivo, numa palavra, à rica e ancestral tradição lusitana e/ou celtibera, agora enriquecida pelo trabalho e o progresso dos séculos.
Um país, uma nação, um povo sem conhecimento, saliência do seu passado histórico, origem e cultura, é como uma árvore sem raízes. Estéril e incapaz de dar frutos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Rei Das Serpentes (Conto fantástico de minha autoria)

O Rei Das Serpentes

Após vários anos, errando pelas terras distantes do sul, enfrentando todo o tipo de vilões, salteadores, bandidos, assassinos e animais selvagens. Brigus regressava agora à terra que o vira nascer. Chovera copiosamente durante todo o dia, abrandando só pelo lusco-fusco. O terreno estava escorregadio e enlameado. A cada passo que dava as suas botas de pele de porco pareciam enterrar-se cada vez mais fundo. No entanto a perspectiva de passar outra noite ao relento não lhe agradava de todo. Em breve seria noite cerrada e não era uma simples terra barrenta que o iria impedir de pernoitar junto a uma desejável fogueira.
Consequentemente, instantes depois avistou o outeiro sobranceiro onde, apenas há três gerações, o clã do javali se havia estabelecido. Com a chegada da agricultura e da pastorícia que depressa se disseminaram por toda a Finisterra, não tiveram mais a necessidade de partirem a cada novo Inverno. Escolhendo assim aquela região cruzada por mil rios, repleta de árvores de fruto e abundante em caça, para se fixarem.
Estranhamente a pequena comunidade estava imersa num silêncio pavoroso. Facto pelo qual o jovem caçador, sentindo que poderia correr perigo, se deteve a meio caminho. Sem a protecção da vegetação do bosque, a brisa que se fazia sentir enregelou-lhe o pescoço desprotegido. Enquanto retirava a capa de linho grosso da sacola que carregava às costas, juntamente com a sua lança, perscrutou as imediações.
Apenas escutou o rumorejar do ribeiro confinante e nada mais. Os cães não ladraram à sua chegada e as crianças não vieram ao seu encontro, tal como é habitual quando um forasteiro chega a um lugar. No final da jornada diária acendiam-se as fogueiras, para cozinhar e contar histórias, no entanto não haviam quaisquer vestígios de fumo. Nas cercanias não crescia qualquer espécie de vegetação e os animais pareciam ter desaparecido como por magia. Afrouxando o cinturão de couro, para que pudesse puxar pelo punhal rapidamente, avançou.
A paliçada estava danificada em vários locais. A argila das choupanas estava gravemente fissurada e o colmo dos telhados descuidado. Tudo indicava ter havido ali um ataque. Porem, a avaliar pela a ausência de vestígios recentes e pela degradação do povoado, tal havia acontecido já há anos. Olhando em redor, Brigus avistou no lado oposto aquele em que estava, algumas dezenas de estátuas com forma humana. Uns pareciam fugir e outros pareciam lutar, mas todos exibiam uma expressão de horror. Algo muito tenebroso havia petrificado o seu clã.
De súbito, Brigus sentiu-se observado. Poisado num das vigas da paliçada, um corvo mirava-o atentamente. O caçador sentiu perigo e puxou pelo punhal. No interior de uma das choupanas algo se mexeu e o silêncio que imperava no local foi quebrado pelo ruído de uma peça de loiça a quebrar-se aparatosamente. O pássaro negro bateu asas e levantou voo. Ali podia estar a resposta para todo aquele mistério. Sem se deter, avançou destemidamente de punhal em riste.
Ao entrar na choupana o caçador reparou nos cacos de um cântaro de barro que estavam espalhados por toda a parte. O braseiro que existia ao centro da pequena habitação estava apagado, no entanto depois de o observar atentamente concluiu que não fazia muito que havia sido extinto. Junto a uma das paredes, junto a outros objectos de barro empilhados, estava uma manta de lã negra que cobria algo compacto. De súbito algo se movimentou debaixo da mesma, despertando a atenção do caçador. Ao puxar pela manta este deparou com um velho assustado, cadavérico e andrajoso que termia de pânico.
- Quem és tu, pobre criatura? – inquiriu decidido, mostrando assim que estava controlador da situação.
- Por favor não me faça mal, por favor! – suplicou o velho, atirando-se para os seus pés.
- Sou o filho mais novo de Quangeius, – revelou o caçador – Brigus. E tu quem és, afinal?
 - Pelos Deuses, julguei que fosses mais um mero salteador, – redarguiu o velho, recompondo a sua postura, – ultimamente têm passado muitos por aqui. Bem-vindo a casa, ou pelo menos aquilo que resta dela. Eu sou Caburoniq, não me reconheces jovem Brigus?
Brigus deu um passo atrás, esfregou os olhos e fixou o olhar no rosto do velho homem. A brisa agitou o colmo do telhado. Um pequeno cão, escanzelado e pelado, entrou na habitação, indo enroscar-se nas mantas que ali se achavam. O velho sorriu e o caçador colocou-lhe uma mão no ombro, retribuindo-lhe o sorriso.
- É bom reverte, meu sábio velho contador de histórias – disse alguns instantes depois. – Conta-me, então, o que por aqui se passou.
- Contarei se me trouxeres um pouco de lenha, em breve anoitecerá e ficará frio, devemos acender a fogueira.
- Vou, então, mas não demoro!
Caburoniq estendeu a Brigus uma pequena machada, com cabo de madeira e cabeça de sílex, apressando-se a ordenar a confusão em que estava a pequena cabana. O jovem caçador precipitou-se para o exterior e dirigiu-se para o bosque. A brisa estava agora incessante e à sua passagem as gentes de pedra pareceram gemer, implorando para que ele as libertasse da infeliz condição em que se achavam.
Por breves instantes, Brigus, deteve-se a observá-las, parecendo ver uma lágrima cristalina a deslizar suavemente pelo rosto de uma pequena menina, cuja mãe a segurava protectoramente ao colo. Julgando ser um devaneio da sua mente desviou o olhar, aconchegou a sua capa e foi buscar a lenha que o velho lhe pedira.   
Quando Brigus regressou à pequena habitação ocupada por Caburoniq, esta estava já recomposta. O velho dispôs a lenha cuidadosamente, no local a esta destinada e fez lume, colocando sobre este um crestado receptáculo de barro, no qual preparou um caldo de espargos. O pequeno cão chegou-se ao lume, procurando-se aquecer. Próximo da entrada, o jovem caçador observava o seu anfitrião, olhando por vezes para o exterior para se assegurar de que estavam sós. A sua intuição persistia em alertá-lo de que ali o perigo era constante.
- Está pronto – disse Caburoniq, quebrando o sinistro silêncio que se havia instalado.
- Há dias que desejava um abrigo e uma refeição quente, no entanto esta sensação de perigo iminente não me deixa apreciá-los comodamente – confessou o jovem.
- Desde do fatídico dia da tragédia que não acontece aqui nada, – revelou o velho –, a não ser a visita inusitada de um ou outro salteador.
- Acredito em ti, mas o meu instinto de caçador diz-me desde que aqui cheguei que estou a ser observado.
- São os espiões dele – revelou o velho.
- Os espiões de quem?
- Do rei das serpentes!
- Mas afinal quem é esse rei das serpentes e o que se passou aqui?
- Vou então contar-te tudo. A velha sapiente que indicou estas terras ao teu pai para estabelecer o clã, esqueceu-se de lhe dizer que estas já eram habitadas.
- Ai sim! E por quem?
- Pelos homens serpente – revelou Caburoniq, estremecendo de medo ao dizê-lo.
- De onde vieram eles?
- Do norte, das montanhas proibidas!
- Das montanhas proibidas?
- Pouco depois da morte do vosso pai, quando tu partiste, o teu irmão Boelius foi explorá-las e nunca mais voltou. Pelo que o teu irmão Lubaurus, tendo lhe sucedido na liderança do clã, as interditou para todo o sempre, a fim de evitar mais desaparecimentos.
- E a seguir o que se sucedeu?
- Deu-se uma invasão de serpentes, tendo sido várias as mulheres e crianças que foram atacadas. Depois as culturas secaram e mirraram e por fim os animais sumiram como por magia, restando somente as suas ossadas.
- Foram as serpentes também?
- Não, elas não passam de pequenos animais que apenas seguem o seu instinto de sobrevivência. Foi o Rei das serpentes e o seu exército.
- E como é esse rei das serpentes?
- Enorme, mais ou menos com a altura de oito homens juntos. Tem umas mandíbulas descomunais e é capaz de matar apenas com o seu olhar. Aqueles que não morrem ao olhar-lhe nos olhos ficam petrificados.
- Como lhe sobreviveste tu?
- Na altura em que apareceram, regressava do rio e ao perceber o que estava a acontecer escondi-me, cobardemente.
- Cobardemente! Será alguém cobarde ao zelar pela própria vida?
- Hum.
- Imagina se também tens sido transformado em pedra, quem me contaria agora o que se passou?
- Provavelmente ninguém!
- Cada um tem o seu papel nesta história e o teu foi sobreviver para contar o que se passou aqui.
- Nunca tinha pensado nisso – disse o velho, agora um pouco mais tranquilo. – E o teu papel, qual é?
- Não imagino sequer, – redarguiu sorridente – é isso que pretendo descobrir.
- Hum.
- Não estão todos lá fora, pois não, para onde fugiram os restantes?
- Estão na caverna.
- Voltaram para a caverna?
- Sim!
- Então é para lá que vamos!
- Vamos? Eu não vou, morro de medo só de pensar num possível encontro com tais criaturas.
- Pois bem, então, partirei sozinho aos primeiros alvores.
- Boa sorte!

    Deixando Carburoniq a dormir profundamente, com o pequeno cão aninhado na sua enxerga de peles, Brigus partiu. A partir do ocidente, o sol tingia o céu de amarelo esbatido, porem tudo ali permanecia inerte e em silêncio. A angustia e o desespero nos olhos das estatuas de pedra.
A voz interior que alertara Brigus para um perigo iminente, a quando a sua estadia na aldeia, persistiu audível, mesmo já quando este se havia embrenhando nos bosques confinantes rumo às montanhas rochosas onde se achava a caverna que o seu clã havia habitado durante centenas de estações e que agora lhe servia novamente de refugio. Já não estava longe do seu destino. No entanto, sentindo-se em perigo iminente manteve-se em alerta. Cada passo que dava era uma incógnita. Tudo poderia acontecer!
Sentia já o calor do sol nos ossos, quando vislumbrou no horizonte as montanhas para onde se dirigia. Ali os pássaros cantavam e as árvores tinham frutos. Ansiava por rever os irmãos. Por isso acelerou o passo e quando já descia a vertente que o conduziria ao luxuriante vale onde se achava a caverna, onde segundo Caburoniq estes estariam, escutou um silvo por entre os arbustos. Aquele ou aquilo que o observara, desde que chegara às cercanias, manifestava-se agora.
- Quem está aí? Mostra-te se tens coragem – bradou. O cabo do punhal a vincar os dedos nodosos.
Escutou-se um breve restolhar, os arbustos estremeceram e uma figura atarracada surgiu na sua frente.
- Quem és tu mulher? - inquiriu, continuando a segurar o punhal. Embora a mulher aparenta-se ser inofensiva, como por vezes o perigo costuma advir donde menos se espera, decidiu não facilitar.
- O meu nome é Cailleach e sou a guardiã deste lugar – declarou serenamente, a voz constante e profunda, prenunciadora de um profundo conhecimento.
Era velha, muito velha, parecendo ter sido sempre velha, desde já do começo dos tempos. A sua pele estava engelhada e seca e os seus cabelos eram brancos como a neve. Apenas tinha um dente no maxilar superior e outro no maxilar inferior, o que a par da verruga que exibia no seu nariz adunco lhe dava um aspecto no mínimo caricato.
- A velha sapiente?
- Sim! Há quem me chame assim.
- Como podes, com esse aspecto, ser a guardiã de um lugar?
- Em tempos fui bela e jovem, no entanto a roda do tempo gira e não poupa ninguém. Os anos de luta com o rei das serpentes desgastaram-me até este ponto – confessou, sempre serena.
- Pelo que sei, parece-me que estás a perder a batalha – disse o jovem, indiferente.
- Estou velha e cansada e o meu tempo está a acabar, chegou a hora de dar o meu lugar a outra – disse, agora acabrunhada.
- E procuraste-me tu para me dizeres isso?
- A escolhida vai ser hoje sacrificada ao maldito – revelou, o desespero a vincar o seu rosto. – Deixa que o teu povo se abrigue na caverna, no entanto todos os anos exige-lhe pela época das colheitas metade das mesmas e uma virgem. Se nada for feito este lugar ficará sem quem o proteja e o povo definhará.
- Porque ninguém faz nada? – perguntou, incrédulo.
- Estão tomados pelo medo.
- E o que posso eu fazer para evitar a nossa ruína?
- És o mais destemido e venturoso de todos eles. Vai, desce até à caverna, não deixes que os lacaios do maldito levem a virgem, comanda o teu povo e leva-o a enfrentá-los – exortou, novamente tranquila.
- Isso não irá despontar a ira do maldito?
- Certamente.
- E, então, como faço eu para o derrotar?
- Não sei, terás que te desenvencilhar, mas agora vai, por favor, não deixes que a virgem lhe seja levada.
- Espero que isto valha a pena – declarou o caçador, começando a descer a vertente em direcção à caverna.
- Cada um só tem o que merece – redarguiu Cailleach. – Procura o seu ponto fraco – acrescentou, apressadamente.
Briugus voltou-se para a encarar, mas esta já havia desaparecido… porem no sítio onde estivera estava agora, estendida sobre a urze, uma lança, afilada e com a altura de dois homens, forjada num polido material que jamais alguma vez havia visto. Sentiu-lhe o peso e manuseou-a, cortando o ar ligeiramente. Para além de lhe atribuir mais mobilidade, não pesava mais do que a sua, a qual era de madeira Uma pequena ajuda, pensou.

 
Quando o jovem caçador alcançou a encosta rochosa onde se achava a embocadura da caverna que abrigava o que restava do seu povo quedou-se a olhar para esta. Bem no centro da mesma estava um montículo de terra, onde bem no centro fora cravada uma estaca de madeira. E presa a esta a mais bela das mulheres que já alguma vez havia visto.
Uma figura imponente de tez pálida que não passava despercebida aos olhos de um homem. Tinha um rosto sólido com as maçãs salientes, um nariz soberbo e uns lábios perfeitos e suculentos. Uma cascata de caracóis negros descaíam-lhe pelas costas até às suas ondulantes e sedutoras ancas. Os seios firmes e hirtos. Os olhos eram negros e insondáveis como uma noite de Inverno.
Certamente seria ela a escolhida de que falara Cailleach. Pois para além de estar presa e à mercê do maldito, em seu redor estava também uma quantidade incomensurável de frutas e vagens. O pagamento que este reclamava pela permanência da sua gente naquele lugar.
Brigus desejou-a de imediato. Mas para que tivesse apenas a hipótese de concretizar o seu desejo, teria de convencer o seu povo a desafiar os lacaios do senhor das serpentes. E pior do que isso, enfrentá-lo.
- Quem és tu e o que fazes aqui, és louco? – inquiriu a jovem, nervosamente, assim que Brigus se aproximou.
- Não, não sou louco, mas posso ficar se tu quiseres – replicou, esbugalhando os olhos, parecendo de facto um louco.
- Engraçado – disse, sorrindo ligeiramente.
- Achas graça?
- Acho, mas não podes ficar aqui, vai-te embora antes que eles venham – declarou de novo agitada.
- Eles, quem?
- O meu povo, se pensam que podes pôr a minha segurança em risco irão atacar-te – revelou preocupada.
- És assim tão preciosa para eles? – perguntou, inocentemente.
- Digamos que sou uma oferenda e que se o meu destinatário não me receber matará todos.
- Pois digo-te que também pertenço ao teu povo e que não permitirei que te sacrifiquem por eles. Vou fazer com que lutem pela tua vida e pela terra que lhes pertence por direito.
- Hum. Mas, quem és tu afinal?
- Briugus, filho de Quangeius e irmão de Boelius e de Lubaurus. Devias ser ainda uma criança quando parti. E tu, como te chamas?
- Possivelmente, pois não me recordo de ti… – declarou, parecendo agora menos preocupada. A esperança de poder ser salva a inundar o seu âmago. - Chamo-me Trebaruna e fui resgatada pelo teu, nosso povo, aos lobos da montanha quando ainda era criança.
Brigus procurava na sua mente o que dizer quando um enorme grupo de gente, vindo do interior da caverna, se aproximou. Tinham um aspecto deplorável. O trabalho árduo e os anos de luta haviam-nos corroído, deixando-os macilentos e de olhar encovado. As vestes estavam andrajosas e no seu olhar lia-se desespero.
- Deixa-a em paz, estrangeiro, não foste para aqui chamado – vociferou o líder, determinado.
- Lubaurus, meu irmão, não me reconheces?
- Brigus, és mesmo tu, Brigus? – perguntou, emocionado. – Pensava que nunca mais te veria, meu irmão. Passaram tantos anos!
Escutou-se um clamor de espanto.
- Nós a pedir aos deuses que nos enviassem um herói capaz de nos salvar e eles mandam-nos um pau de virar tripas que segura um espeto – disparou uma mulher, irónica e mordazmente.
- Está calada mulher – vociferou Lubaurus. – A família é sempre bem vinda, por mais dificuldades que possamos estar a enfrentar.
- Aí, sim!... Então porque não esteve ele presente quando mais precisamos? – inquiriu, desafiando-o.
- Já te disse que te calasses, mulher – devolveu Lubaurus, preparando-se para lhe acertar com as costas da mão na face.
- Pára, tem calma irmão – disse Brigus, entrepondo-se entre os dois. – Eu respondo à pergunta – acrescentou, inabalável.
Lubaurus afrouxou o seu impulso e quedou-se para escutar o irmão.
- Eu estou onde os deuses querem que eu esteja e agora é aqui que eles querem que eu esteja – declarou, encarando a mulher do irmão.
- E porque vieste até nós? - questionou, intransigentemente.
- Para vos liderar contra o mal que enfrentam – enunciou, sereno.
Escutou-se um clamor, a esperança do povo renascera nas palavras do jovem caçador.
- Este mal que enfrentamos está para além do inimaginável – declarou Lubarurus, a encarnação do desalento. Acreditava que a única forma de resolver as suas dificuldades fosse corresponder a todas as exigências do maldito.
Pelo menos conseguira manter o povo vivo, o que Brigus considerava um grande feito, no entanto insuficiente. Aquelas terras haviam sido prometidas pelos deuses ao seu pai, pela sua memória tinham de lutar pela continuidade da sua presença nelas.
- Pelos deuses, a noite está a chegar e não tarda que eles venham buscar a rapariga, é prudente que nos recolhamos – disse Lubaurus, medroso.
- Querem continuar a passar fome e a entregar as vossas filhas ao maldito ou preferem repor a ordem, a estabilidade e a felicidade? – perguntou, a plenos pulmões.
Escutou-se um novo clamor. O povo estava entusiasmado e queria colocar termo aquela situação angustiante. Os caçadores batiam com as lanças na terra chã e com as espadas nos escudos. Trebaruna sorria, iria continuar a viver, casar e ter filhos. Talvez com Brigus, ele era o candidato ideal. Forte, destemido e sem receios.
- E o que pretendes tu fazer, meu estimado irmão? - perguntou Lubarus.
- Enfrentar os soldados do maldito – confessou.
- Mas isso é uma loucura!
- Não, não é! Quem de vós dos presentes nunca fez cair um caçador inimigo por terra?
Todos o tinham feito, nem que tivesse sido só por uma única vez.
- O que têm estes de diferente dos outros?
- Nada!
- Então enfrentemo-los esta noite.
- E quando o maldito vier ver porque não regressaram os seus lacaios com os seus prémios?
- Confias em mim ou não?
- Confio!
- Deixa que eu depois trato dele – declarou, determinado em seguir em frente com o plano que tinha em mente.
- Diz-me, então, meu irmão, quantos soldados costumam vir buscar as raparigas?
- Cerca de vinte.
- Óptimo! Somos três vezes mais, o que nos vai facilitar a tarefa. E por onde surgem?
- Ao longo do vale.
- Hum. Estou a ver! Coloquem armadilhas ao longo da sua extensão. Pois quando chegarem até nós, serão ainda menos.
- Assim faremos!
- Agora liberta Trebaruna e leva-a mais as outras mulheres e as crianças para a segurança da caverna. Mas, deixa ficar a comida e a estaca tal e qual como estão, irei precisar delas para mais tarde.
- E onde nos posicionaremos?
- Aguardamo-los nas vertentes. E atacamos quando se aproximarem da caverna.
- Pois bem!
A noite surgiu negra e gélida, quebrada por gritos de terror e dor. As armadilhas haviam resultado!
Nunca o clã do javali havia dado luta aos guerreiros serpente, pelo que os poucos que alcançaram a caverna estavam receosos e amedrontados. Quando os caçadores caíram sobre si, a sua resistência foi mínima pelo que os levaram de vencida facilmente. Felizmente ninguém morrera, apenas um jovem caçador, ansioso e descuidado havia ficado ferido.
Já a noite ia alta e os sórdidos e ofídios restos mortais do inimigo haviam sido consumidos completamente pelo fogo, quando Lubaurus abordou um taciturno e meditativo Brigus.
- Não tardará que o maldito surja para verificar o que aconteceu aqui – disse Lubaurus, agora mais confiante, mas ainda assim receoso pelo desfecho da sua ousadia.
- Deixa que venha – replicou Brigus, enquanto limpava, das suas vestes, o sangue do inimigo.
- Mas…
- Leva-os a todos para a caverna, deixa-os em segurança e regressa sozinho. Traz-me crina de cavalo negra e um vestido de mulher.
A crina era utilizada pelo clã para manufacturar corda.
- Que raio de ideia é a tua?
- Traz-me o que te pedi, que logo verás!
Lubaurus desapareceu no interior da caverna e instantes depois regressou com aquilo que o jovem irmão lhe pedira.
- Temo por ti – confessou o irmão mais velho.
- Não temas! Os anos em que estive ausente, a combater as mais vis das criaturas, prepararam-me para este momento. Confia no sangue do teu sangue.
- Confiarei – redarguiu, abraçando o irmão comovidamente. – Posso fazer mais alguma coisa por ti?
- Podes! Regressa para a caverna e aguarda, mantendo os outros tranquilos.
- Que assim seja!
Brigus vestiu o vestido que solicitara ao irmão e com a crina de cavalo simulou uma farta cabeleira de mulher. Ocultou a lança que Cailleach lhe cedera, perto da estaca, e encostou-se a esta tal como se tivesse amarrado à mesma. O embuste estava preparado, restava-lhe agora aguardar pela chegada da criatura ofídia.
A lua, um obre cheio e prateado, iluminava o local. Brigus sabia bem o que fazer, no entanto disciplinava a mente para que jamais em alguma circunstância viesse a olhar directamente nos olhos da criatura. Pois se ficasse transformado em pedra deitaria tudo a perder. Ao longe escutava-se o lamento do lobo e o choro do corvo.
De súbito Brigus escutou movimento, não por onde esperava ver a hedionda criatura surgir, mas sim proveniente do lado oposto, no sentido da caverna. Era Trebaruna, quem vinha na sua direcção.
- O que fazes aqui, estás louca?
- Não, não estou louca, mas posso ficar se tu quiseres?
- Onde já ouvi, eu, essas palavras?
Ambos riram.
- Vim apenas agradecer-te por me teres salvo a vida – declarou, alegre e sorridentemente.
- Pronto, está bem, já agradeceste! Agora vai para junto dos outros e procura mantê-los calmos.
- Irei, mas não sem antes te mostrar o que te espera caso venças a criatura – declarou, beijando-o em seguida nos lábios.
- Vencerei – disse o jovem guerreiro, agora ainda mais determinado em levar o rei das serpentes a cair por terra, pela perspectiva de sentir novamente aqueles lábios quentes e carnudos a tocarem os seus.
Trebaruna acabou por ir-se juntar ao restante clã, na aparente segurança da caverna e ele, o maldito, o hediondo e descomunal, o rei das serpentes emergiu por entre a escuridão.
Caburoniq não se havia poupado na descrição que fizera ao jovem caçador, exagerando largamente, ainda assim a criatura era detentora de um tamanho descomunal. A sua hedionda cabeça estava já bem perto de Brigus enquanto a cauda ainda não se vislumbrava.
Os seus olhos, dois enormes orbes vermelhos e luzidios, brilhavam na noite, procurando atrair o olhar dos mais incautos. Das suas descomunais mandíbulas, tais lâminas lancinantes, escorria uma seiva pestilenta e pútrida.  Do seu corpo couraçado e escamoso emanava um odor repugnante e nefasto. E com a sua língua, bifurcada e porosa, sondava a área em busca dos seus lacaios desaparecidos.
Não detectando quaisquer sinais dos seus comparsas, serpenteando-se vorazmente, depressa alcançou a pretensa virgem. Por instantes engoliu o embuste que o jovem caçador lhe havia preparado, permanecendo quedo, mas depressa os seus elevados instintos detectaram a fraude e enfurecido, soltando um agonizante e ensurdecedor silvo ergueu-se altivo, preparando-se para mergulhar sobre o impostor que o usara desafiar, a fim de o engolir vivo.
Brigus, caçador e guerreiro experimentado, embora nunca tendo encarado a nefasta criatura olhos nos olhos, desde que esta entrara na clareira, nunca desviou o olhar da mesma. Por pouco não descobria o seu ponto fraco, mas quando o maldito se ergueu nas alturas, os seus olhos de lince apressaram-se a procurá-lo, encontrando-o. A sua dura e espessa couraça de escamas cobria-lhe todo o corpo no entanto a garganta encontrava-se a descoberto. Teria de agir rápido.
O monstro escancarou a sua bocarra descomunal, libertando um odor fétido que por instantes revolveu as entranhas do jovem caçador. Tão célere, tal como se erguera, assim se deixou cair sobre a sua pretensa vitima. Porem, quando o fez era já tarde para si. Brigus desembaraçara-se com facilidade das amarras que o seguravam ao poste. Em seguida, pegou na lança que havia ocultado entre as frutas e as vagens e postando-se ajoelhado ergueu-a apontando a ponta desta ao único ponto a descoberto da besta.
 A velocidade com que o rei das serpentes se deixou cair sobre Brigus para o abocanhar era tal que foi o suficiente para que a lança se enterrasse por completo na sua garganta. Um grito de dor ecoou atroador por toda região, e o ofídio e pesado corpo do maldito tombou com estrondo sobre a terra chã, contorcendo-se em agonizantes espasmos. Os pássaros sobressaltados abandonaram as copas das árvores e o lamento do lobo emanou lúgubre.
- Estamos livres, podem abandonar a caverna, os olhos do maldito fecharam-se para sempre – bradou o jovem caçador, tomado pelo o entusiasmo da proeza que havia acabado de conseguir realizar.
Aos poucos e poucos o restante clã foi emergindo da caverna. A raiva que sentiam pela tirânica criatura era tanta que se apressaram na sua direcção, acometendo da melhor maneira que podiam sobre o corpo que agora jazia praticamente inerte, bloqueando quase por completo a embocadura do abrigo. Se havia alguma réstia de vida na criatura esta depressa se esvaeceu.
De súbito, como por artes mágicas, o nauseabundo cadáver transformou-se em pó que rapidamente se dissipou com o vento. E um audível clamor de deslumbramento e alegria escutou-se. Trebaruna correu a beijar o herói e o povo carregou-o em ombros.
As gentes que estavam petrificadas regressaram à sua forma natural. Boélius regressou das montanhas proibidas, nas quais estivera também ele petrificado durante anos. E Caburoniq pôde contar novamente histórias às crianças.
Brigus dominou a serpente que oprimia o clã do qual, com todo o mérito, se tornou chefe. Desposou a jovial e enigmática Trebaruna, a qual cuidou maternalmente dos demais. E ainda hoje, milénios depois de ambos terem sido idolatrados como deuses, pelas gerações vindouras, os seus nomes se escutam em Finisterra, onde a sua presença divina é também ainda sentida.

Ricardo Alves


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